Municipal do Rio deu início a uma temporada ainda desconhecida

Violinista Guido Sant’Anna e tenor Guilherme Moreira se destacam no concerto que abriu a temporada do TMRJ, mas… que temporada é essa?

O Theatro Municipal do Rio de Janeiro abriu a sua temporada de 2024 na última sexta-feira, 08 de março, com um concerto da Série Celebrações que reuniu a Orquestra Sinfônica e o Coro do Theatro Municipal, o violinista Guido Sant’Anna e quatro solistas do próprio Coro, todos sob a condução do regente titular da OSTM, Felipe Prazeres. No programa da noite, obras de um trio BBB (Beethoven, Brahms e Bruckner) – remetendo, ao mesmo tempo, ao BBB mais tradicional da música clássica (com a substituição de Bach por Bruckner) e, de forma indireta, ao programa alienante da TV.

Antes de abordar o concerto propriamente dito, é preciso esclarecer que ele, o concerto, abriu uma temporada ainda indefinida, e com agravante: logo depois do período mais grave da pandemia de Covid-19, este já é o terceiro ano seguido em que a atual direção do TMRJ não consegue divulgar uma temporada completa. Nem sequer uma temporada semestral.

Há, no entanto, um fato curioso nesta “não divulgação”: no primeiro episódio deste ano do Podcast Municipal para Você, o diretor artístico da casa, Eric Herrero, avisou no fim da gravação que o próximo episódio do programa será sobre a ópera L’Elisir d’Amore (O Elixir do Amor), de Gaetano Donizetti, sem fornecer maiores detalhes.

Ora, se já está definido que a referida obra será uma das próximas atrações do Municipal do Rio, por que não há divulgação oficial? Parece existir na casa algum estranho fetiche por manter segredo a respeito da sua programação. E, desde o ano passado, dizem por aí que a melhor maneira de se conhecer a programação do TMRJ é acompanhar no Facebook as publicações de um ou outro funcionário que dá expediente no prédio histórico da Cinelândia. Se non è vero, è ben trovato.

No próprio programa de sala do concerto de abertura, a secretária de Cultura do estado do Rio de Janeiro, Danielle Barros, afirma que o Theatro Municipal do Rio de Janeiro terá “uma belíssima temporada artística” e convida o público: “não percam a agenda de apresentações da nossa temporada artística 2024”. Muito bem, mas, senhora secretária… não se sabe que agenda será essa! Como se convida alguém para uma “agenda” desconhecida? No mesmo programa de sala, Eric Herrero escreve que a temporada será “recheada de atrações de alta qualidade”, mas não cita que atrações serão essas. Esse tipo de declaração vaga não esclarece nada, não acrescenta nada.

Herrero e a presidente da Fundação Teatro Municipal, Clara Paulino, não puderam comparecer ao concerto, pois estavam em Brasília participando de um evento do Ministério da Cultura. Mesmo assim, escreveram uma mensagem para o público que o regente Felipe Prazeres leu antes da apresentação. E o que dizia essa mensagem de realmente relevante? De novo, infelizmente nada.

Coro do Theatro Municipal

Bem, pelo menos no que diz respeito às óperas profissionais encenadas, além da supracitada obra cômica de Donizetti, em abril, estão previstas para formar a programação lírica de 2024 do TMRJ, em julho, as três óperas em um ato cada (Il Tabarro, Suor Angelica, e Gianni Schicchi) que integram Il Trittico (O Tríptico), de Giacomo Puccini; e ainda Rusalka, de Antonín Dvořák, prevista para o segundo semestre, provavelmente em novembro – e com a mesma montagem que o encenador André Heller-Lopes acaba de apresentar em Tenerife, na Espanha.

Vale a ressalva: isso é o que está previsto. Se vai mesmo acontecer, saberemos mais adiante. Para além disso, a prudência diz que é melhor aguardar a direção da casa se dignar a divulgar a programação oficial. Vai que o vento muda de direção!

O concerto

Na sexta-feira, o concerto começou com a Abertura Coriolano, de Ludwig van Beethoven, que a compôs inspirado na tragédia homônima do poeta e dramaturgo austríaco Heinrich Joseph von Collin, hoje praticamente esquecida, enquanto prevalece a versão de Shakespeare sobre o mesmo general romano. Na obra, dois temas (um mais enérgico e outro mais calmo), que representam os sentimentos contrastantes do protagonista em momentos distintos da tragédia, são apresentados em sequência e depois se entrelaçam, para levar à conclusão da peça.

Nesse Beethoven, a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal apresentou-se bem, com uma sonoridade, ainda que não digna de grandes elogios, mais coesa em relação ao que se ouviu em vários momentos do ano passado. Felipe Prazeres cuidou bem da dinâmica e valorizou os contrastes.

Em seguida, ouvimos o maravilhoso Concerto para Violino em Ré Maior, Op. 77, de Johannes Brahms. Composta em 1878 e estreada no ano seguinte, esta obra em três movimentos (Allegro non troppo / Adagio / Allegro giocoso, ma non troppo vivace) foi considerada por alguns contemporâneos como “intocável”. O célebre crítico Hans von Bülow, por exemplo, considerou-o um concerto “contra o violino”, e não “para violino”. Exageros à parte, a peça realmente é difícil, e exige do solista a perfeita combinação entre técnica e expressão.

OSTM com a oboísta Juliana Bravim no centro da foto

Ao contrário do que ocorreu na Abertura Coriolano, nessa obra mais densa a OSTM patinou em vários momentos, apresentando uma articulação oscilante, mas vale mencionar a precisão e a beleza dos solos da oboísta Juliana Bravim – que, a propósito, eu já havia destacado em um concerto do ano passado. Só é uma pena que ela seja uma musicista contratada, não integrando o conjunto de maneira fixa.

A glória da noite, como já era esperado, foi o solista. O jovem violinista paulistano Guido Sant’Anna, vencedor em 2022 do importante Fritz Kreisler International Violin Competition, em Viena, ofereceu uma performance arrebatadora, conjugando técnica e sentimento, precisão e expressividade. Se o seu apuro técnico restou evidente no primeiro e no terceiro movimentos, que exalaram musicalidade, foi na passagem intermediária que a sua qualidade expressiva se sobrepôs, exibindo um intérprete completo.

Guido Sant’Anna em meio à OSTM

Como bis, Sant’Anna ofereceu ainda o Capriccio nº 13, em Si Bemol Maior, “A Risada do Diabo”, de Niccolò Paganini. Peça com alto grau de dificuldade, virtuosística, foi interpretada pelo violinista com precisão assombrosa. O público que foi ao Municipal do Rio na sexta-feira talvez não saiba disso ainda, mas estava diante daquele que já está se destacando como um dos grandes artistas brasileiros nascidos neste século.

Depois do intervalo, o Te Deum, em Dó Maior, WAB 45, de Anton Bruckner, encerrou a noite. O compositor austríaco, cujo nascimento completa 200 anos neste ano, começou a trabalhar na obra em 1881, mas a completou somente em 1884, e a estreia aconteceu no ano seguinte, em Viena. Obra de grande força dramática, expressa em grande escala a devoção religiosa do próprio compositor.

À frente, Michele Menezes, Lara Cavalcanti, Felipe Prazeres (de costas), Guilherme Moreira e Leonardo Thieze

Felipe Prazeres uma vez mais procurou valorizar os contrastes entre as passagens mais explosivas e aquelas mais contidas, mas parece ter exagerado na dose das primeiras. O Coro do Theatro Municipal, preparado por Edvan Moraes, chegou até a demonstrar boa expressividade nos momentos que demandavam menos energia. Nas passagens mais fortes, no entanto, houve exagero, com uma estridência que chegava a incomodar bastante o ouvido. A OSTM apresentou-se na medida das suas possibilidades, sem grande destaque, e os metais, pelo menos, não chegaram a decepcionar como em outras oportunidades. Do quarteto de solistas, a soprano Michele Menezes, a mezzosoprano Lara Cavalcanti e o baixo Leonardo Thieze ofereceram performances regulares, sem menções positivas ou negativas. O tenor Guilherme Moreira se destacou com um leve e lindo timbre, e um canto expressivo, dotado de sentimento.

O Te Deum de Bruckner é o tipo de obra depois da qual não faz o menor sentido dar um bis, por mais que um público que pareceu não ter compreendido bem o espírito religioso da peça esperasse por isso. Felipe Prazeres não deveria cair nessa tentação, mas caiu, e repetiu o trecho final. Esse tipo de atitude, de concessão desnecessária e até mesmo descabida (ainda mais depois que Guido Sant’Anna já havia dado um bis antes do intervalo), não ajuda muito a educar o público, a fazê-lo entender que, para além do entretenimento, havia ali uma obra de arte. É pena.


Fotos: Daniel Ebendinger. Na foto principal, conjuntos e solistas durante o ‘Te Deum’ de Bruckner.

Um comentário

  1. É lamentável a decadência musical do Rio de Janeiro. Além das indefinições do Theatro Municipal no seu jogo de esconde-esconde da temporada com o público, a OSB não tem temporada apresentada, a Petrobras Sinfônica apresentou uma temporada magra e a Sala Cecília Meirelles nem sombra da temporada tem.

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