Barítono Vinicius Atique foi o principal destaque vocal de uma estreia em que Felipe Prazeres ficou devendo.
L’Elisir d’Amore (O Elixir do Amor), 1832
Ópera em dois atos e três quadros
Música: Gaetano Donizetti (1797-1848)
Libreto: Felice Romani (1788-1865)
Base do libreto: outro libreto, escrito por Eugène Scribe (1791-1861) um anos antes (1831) para a ópera Le Philtre (O Filtro), de Daniel François Esprit Auber (1782-1871)
Theatro Municipal do Rio de Janeiro
19 de abril de 2024
Direção musical: Felipe Prazeres
Direção cênica: Menelick de Carvalho
Cenografia e figurinos: Desirée Bastos
Iluminação: Paulo Ornellas
Elenco:
Nemorino: Anibal Mancini, tenor
Adina: Michele Menezes, soprano
Dulcamara: Savio Sperandio, baixo
Belcore: Vinicius Atique, barítono
Giannetta: Fernanda Schleder, mezzosoprano
Coro do Theatro Municipal
Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal
O Theatro Municipal do Rio de Janeiro abriu a sua temporada lírica de 2024 neste fim de semana, apresentando L’Elisir d’Amore (O Elixir do Amor), melodrama cômico de Gaetano Donizetti sobre libreto de Felice Romani. E este já é um fato a ser louvado, pois é a primeira vez desde 2018 que a casa apresenta uma ópera com encenação completa ainda no primeiro semestre do ano (e naquela oportunidade, ressalte-se, a tal ópera foi a única encenada durante toda a temporada).
A propósito, o TMRJ divulgou oficialmente na última sexta-feira os detalhes da sua programação de 2024, com datas, horários e elencos (veja aqui). Essa programação será motivo de um artigo que Notas Musicais publicará em breve.
Relações humanas
Donizetti, compositor extremamente prolífico, já tinha escrito mais de 30 óperas quando compôs O Elixir do Amor para o Teatro Canobbiana, de Milão, em 1832. Antes desta, a sua obra mais importante havia sido Anna Bolena, que, ao contrário do Elixir, desapareceu dos teatros por décadas depois do seu triunfo inicial.
O sucesso ininterrupto do Elixir deve-se, ao mesmo tempo, ao libreto conciso, engraçado e inteligente de Romani (repleto de sentimentos e de situações cômicas e comoventes), e também à música inspiradíssima de Donizetti, que caracteriza à perfeição os quatro personagens principais: o ingênuo e romântico Nemorino, a caprichosa Adina, o militar Belcore e o médico charlatão Dulcamara.
A ópera trata, sobretudo e sempre com leveza, das relações humanas e das situações derivadas dessas relações: o amor sincero de Nemorino por Adina e o seu desespero para ser correspondido; o interesse menos nobre de Belcore pela mesma jovem, claramente baseado em pura e simples atração física; o evidente prazer que Adina sente em ser cortejada por vários pretendentes; a inveja que ela desperta nas camponesas por causa disso, e também a inveja que as camponesas despertam nela quando esta observa que Nemorino está sendo cortejado por outras jovens – só então percebendo, diante da possibilidade da perda, que o amava de verdade; e, não menos importante, a necessidade ancestral do homem de se dar bem e angariar lucros enganando os seus semelhantes (personificada em Dulcamara).
Na semana que antecedeu a estreia da montagem, uma notícia publicada no jornal O Globo informou que uma ONG suíça identificou que uma empresa multinacional adiciona açúcar a alguns dos seus produtos alimentícios para crianças e bebês quando comercializados em países pobres e em desenvolvimento, mas não o faz na Europa. E o que isso tem a ver com a ópera? Ora, isso demonstra o quanto Dulcamara permanece um personagem atualíssimo!
Encenação honesta, mas visualmente cansativa
A produção da comédia de Donizetti conta com a assinatura do diretor Menelick de Carvalho, que concebeu uma encenação bastante honesta e muito próxima do libreto original. Em seu texto no programa de sala, Carvalho afirma que buscou inspiração para a ambientação da trama no libreto que Eugene Scribe escreveu para a ópera francesa Le Philtre, que por sua vez é a base do libreto de Felice Romani. Assim, o diretor situou a sua encenação no século XVIII, antes da Revolução Francesa, na cidade de Mauleon. A única liberdade tomada foi substituir a carroça de Dulcamara por um balão (o primeiro voo de balão foi registrado na França, em 1783).
Em geral, a direção de atores de Menelick de Carvalho funciona muito bem, com o diretor proporcionando uma boa movimentação cênica, sobretudo do Coro (com o auxílio da direção de movimento de Bruno Fernandes e Mateus Dutra). Por outro lado, parece ter havido também inspiração em outras encenações da mesma ópera, por exemplo, quando Nemorino faz malabarismo com laranjas, ou quando um soldado acerta com sua arma o pé de Belcore.
Os simples e corretos figurinos de Desirée Bastos cumprem bem a sua função. O traje de Dulcamara, propositalmente exagerado, poderia ter sido menos extravagante. O cenário único (e o Elixir é uma ópera que aceita bem um único cenário para os seus dois atos), também de autoria de Bastos (com projeto cenográfico de Kallie Dias), é do tipo que certamente dividirá opiniões, por lembrar mais cenários de balés, ou até mesmo de peças infantis. Quando esse cenário é conjugado com a iluminação pouco inspirada de Paulo Ornellas, o efeito causado por um colorido forte vai cansando a visão ao longo da apresentação.
Faltou regência
Na récita de estreia, em 19 de abril, o desempenho vocal foi bastante irregular. Como Giannetta, a mezzosoprano Fernanda Schleder ofereceu uma performance cênica irrepreensível, mas a sua voz apresentou problemas de afinação e de emissão.
O baixo Savio Sperandio, um dos cantores brasileiros mais experientes e qualificados, deu a impressão de que já passou da fase de interpretar personagens “bufos”. Se a sua presença cênica é sempre cativante, faltou requinte à sua interpretação vocal nos momentos de agilidade, como na cavatina de Dulcamara, Udite, udite, o rustici, ou no dueto com o tenor, Voglio dire, lo stupendo elisir. Para completar, a opção de cantar a barcarola Io son ricco e tu sei bella (com a soprano) imitando a voz de um idoso, como alguns cantores especialistas em papeis bufos costumam fazer, resultou constrangedora, com uma emissão falha que, no fim das contas, deixou o bel canto escorrer pelo ralo mais próximo.
A soprano Michele Menezes interpretou uma Adina correta na maior parte do tempo, mas que escorregou na afinação em alguns agudos. E, em seu canto, pôde-se notar a falta de refinamento e capricho no acabamento de algumas frases melódicas. É o tipo de falta que pode ser corrigida, aprimorada. Resta saber se a artista buscará esse aprimoramento. Seu melhor momento foi na já citada barcarola Io son ricco e tu sei bella, cantada com doçura e com belas linhas.
A parte de Nemorino, embora definida em muitas fontes como tendo sido escrita para o registro de tenor lírico-ligeiro, sempre me pareceu funcionar melhor quando entregue a um tenor lírico, ou seja, a uma voz um pouco mais pesada, mais encorpada, e essa minha percepção pode ter a ver, em alguma medida, com a orquestração de Donizetti. O cantor escalado para a produção do TMRJ, o ótimo Anibal Mancini (um tenor lírico-ligeiro) exibiu, como de costume, a sua afinação perfeita, e rendeu bem em boa parte da récita, culminando com uma razoável interpretação da sua grande ária, Una furtiva lagrima. Em alguns momentos, porém, tive exatamente a sensação de que lhe faltava “peso”, não apenas para brigar com o volume orquestral excessivo imposto pelo regente, mas para enfrentar a própria orquestração de Donizetti. No fim, apesar dessa sensação, o saldo foi positivo.
A voz mais eficiente da noite, no entanto, foi a do barítono Vinicius Atique, que interpretou o sargento Belcore. Depois de um começo hesitante em sua cavatina, Come Paride vezzoso, certamente prejudicado pelo volume da orquestra e pelo andamento lento, o artista se soltou e ofereceu uma belíssima récita, dando vida ao militar conquistador com naturalidade. Seu segundo ato foi ainda mais gratificante, e no número musical mais bem resolvido da noite, o dueto com o tenor Ai perigli della guerra, exibiu dicção perfeita, emissão clara e bem projetada, fraseado requintado e boa agilidade. Fez, enfim, bel canto como manda o protocolo.
Por sua vez, o Coro do Theatro Municipal, preparado por Edvan Moraes, exceto por algum excesso nos agudos (um tanto estridentes – como, aliás, já tinha acontecido no concerto de abertura da temporada), apresentou-se bem nas suas participações, com destaque para as vozes femininas na cena com Giannetta no segundo ato, Saria possibile, em que é revelada a morte de um tio de Nemorino que lhe deixou grande herança.
A Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal não ofereceu uma boa récita, apresentando deficiências que já se tornaram recorrentes, como a afinação oscilante das madeiras e dos metais, e sérios problemas de articulação. Pior é a aparente falta de preparação do seu regente titular, Felipe Prazeres, para conduzir óperas. Sobretudo no primeiro ato, o regente optou por alguns andamentos lentos que deixaram os cantores ainda mais expostos. Em vários momentos, faltou atentar para o volume da orquestra e trabalhar melhor a dinâmica. Houve desencontros inexplicáveis entre o fosso e o palco, e o resultado final foi um espetáculo musicalmente irregular.
Por fim, considerando que a maioria absoluta da audiência carioca, tal qual a de São Paulo, definitivamente não tem ouvidos treinados, o sucesso de público deste Elixir é certo, mesmo com os apontamentos acima. E isso não chega a ser ruim, pois é importante atrair um público iniciante, ou não muito acostumado com a ópera.
Cabe à direção da casa, no entanto, tomar as providências para elevar o nível das suas produções líricas, para que este mesmo público passe a se habituar com qualidade superior. A Traviata de novembro passado não pode ser uma exceção, mas, sim, um parâmetro mínimo de qualidade a ser sistematicamente perseguido.
Regentes lá e cá
E já que citei São Paulo, chega a ser sintomático que aqueles que deveriam ser os dois teatros de ópera mais importantes do país, o Theatro Municipal de São Paulo e o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, contem hoje com regentes titulares sem qualquer intimidade com o gênero.
Homenagem a Léo Ortiz
A presidente da Fundação Teatro Municipal, Clara Paulino, dedicou a récita de estreia de O Elixir do Amor ao violinista Léo Ortiz, músico da OSTM que havia falecido naquele mesmo dia. Ortiz era um dos músicos mais antigos da casa ainda em atividade.
Leia aqui a crítica do elenco que cantou no dia 26 de abril.
Fotos: Daniel Ebendinger (na foto principal, visão geral do cenário da ópera, com Fernanda Schleder e Vinicius Atique à esquerda; Savio Sperandio ao centro; Anibal Mancini e Michele Menezes à direita; e o Coro do TMRJ ao fundo).
Leonardo Marques nasceu em 1979, é formado em Letras (Português/Italiano e respectivas literaturas) e pós-graduado em Língua Italiana. Participou de cursos particulares sobre ópera e foi colaborador do site Movimento.com entre 2004 e 2021.
Bom dia, querido! Nasci na ópera, meu pai era juíz de direito e ele só ouvia ópera! Não conheço nada mais além de ópera! Sou formado em bacharel em música com a maravilhosa Neyde Tomaz, esposa de incrível Rio Novello, não sei se você deve conhecer!
Fiz mestrado em performance com o tenor Jerone Prouett nos EUA. Cantei por 14 anos na Camerata antiqua de Curitiba com o maestro Roberto de Regina e tantos outros, não sei se você deve conhecer! Canto no coro do Theatro Municipal desde 2002 e tenho muito respeito pelos artistas e seus esforços para alcançarem os seus objetivos como cantores e como artistas. Lamento muito a sua maneira de criticar e desmerecer o trabalho dos solistas e artistas em geral! Você pode jogar ao vento coisas que não sabe tecnicamente entender, mas peço gentilmente que quando for assistir a uma montagem, vá com a alma mais tranquila e feliz, todos estão dando o seu melhor! Essa sua agressividade não é necessária neste mundo tão maravilhoso e encantador, que é o mundo das artes em geral! Seja muito feliz!
[…] aqui a crítica da estreia da […]