OSESP chega aos 70 anos sob as bênçãos de Beethoven e Brahms

Temporada 2024 foi aberta com Coro, Orquestra e um quarteto de solistas de nível internacional.

Há quem diga que, no Brasil, o ano só começa depois do carnaval. Para nós, melômanos paulistanos, não é bem assim: independentemente das nossas atividades profissionais e cotidianas, é a abertura da temporada da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP) que traz aquela sensação de que “agora o ano começou”. E desta vez podemos dizer que o ano começou muito bem. E não é um ano qualquer: a OSESP está celebrando os seus 70 anos, os 30 do Coro e os 25 da sua casa, a Sala São Paulo.

Em um momento em que instituições culturais que nos são tão caras, como o Festival Amazonas de Ópera e o Theatro São Pedro, estão atravessando sérios e tristes problemas, a OSESP é sempre o nosso consolo, nosso porto seguro, o exemplo de que é possível haver uma instituição cultural sólida e de qualidade no Brasil. Ao menos uma. É verdade que, durante esses setenta anos, a orquestra enfrentou altos e baixos, mas desde a reestruturação, que teve início em 1997 e foi liderada pelo maestro John Neschling, a OSESP tem mantido um nível de qualidade, estabilidade e – segundo me foi dito – respeito aos artistas, algo raro em nosso país.

A tripla comemoração merecia, de fato, uma abertura com Coro e Orquestra, além da presença de solistas de nível internacional. No programa, a Missa em Dó Maior, Op. 86, de Ludwig van Beethoven (1770-1827), e a Sinfonia nº 1 em Dó Menor, Op. 68, de Johannes Brahms (1833-1897). Não é um programa grandioso, mas consistente, e foi muito bem executado, tornando-se digno de uma importante abertura de temporada.

É interessante lembrar que as duas obras têm algo em comum: ao compô-las, seus respectivos compositores sentiam-se pressionados por obras de grandes mestres que os precederam. Tendo diante de si as nove sinfonias de Beethoven, Brahms levou mais de vinte anos para concluir a sua primeira sinfonia, que estreou em 1878. A essas alturas, o compositor, com mais de quarenta anos de idade, já tinha estreado o seu primeiro Concerto para Piano, as suas duas Serenatas e suas Variações sobre um tema de Haydn.

Se Brahms sentiu o peso de Beethoven, também Beethoven sentiu o de Haydn. A Missa opus 86 foi encomendada pelo Príncipe Nikolaus Esterházy II para celebrar o dia onomástico de sua esposa. Essa era uma tradição mantida por Haydn, que por décadas foi o Kapellmeister da família. Beethoven já era um compositor renomado e experiente, mas não no terreno da música sacra. Ele havia composto, em 1803, o oratório Cristo no Monte das Oliveiras, mas não uma missa, e só voltaria ao gênero cerca de quinze anos mais tarde, com a Missa Solemnis. Era natural, pois, que Beethoven sentisse o peso de Haydn, que ainda estava vivo. Em carta a Esterházy, o compositor mencionou o desconforto com o qual lhe entregaria a missa, já que ele estava habituado às “obras-primas inigualáveis do grande Haydn”.

“A expressão da religiosidade pessoal – de uma busca individual pela ‘paz interior’, para usar as palavras que Beethoven inscreveu na partitura da ‘Dona nobis pacem’ da grandiosa ‘Missa Solemnis’ – é essencial na ‘Missa em Dó Maior’”, escreveu Lewis Lockwood em seu incontornável livro Beethoven: The Music and the Life. “Até mesmo as seções corais e, certamente, as seções em que o coro e os solistas vocais combinam forças têm uma intimidade na ambientação do texto para as passagens mais fervorosas que, inequivocamente, prenunciam a ‘Missa Solemnis’ e afastam a obra das composições mais tradicionais (…)”.

Tendo a concordar com o que Michael Moore escreveu, em 1999, nas notas de programa que acompanhavam um concerto na Filadélfia: “embora a ‘Missa em Dó Maior’ seja frequentemente ofuscada pela imensa ‘Missa Solemnis’ (…), ela tem uma franqueza e um conteúdo emocional que, às vezes, faltam a essa última obra”. Eu iria ainda mais longe: ao musicar o texto litúrgico, Beethoven o transformou em poesia.

A interpretação
Thierry Fischer

Na última quinta-feira, a leitura sutil do maestro titular Thierry Fischer, à frente da OSESP e do Coro da OSESP, salientou esse caráter emocional e introspectivo da obra. A isso aliou-se a atenção ao texto e ao fraseado demonstrada pelo excelente quarteto de solistas. Se a soprano alemã Susanne Bernhard apresentou alguma dificuldade no Kyrie – onde parece ter-lhe falhado um pouco o apoio, e a sua voz por vezes soou estridente -, no restante da obra a sua atuação foi bastante satisfatória, com belo timbre. Também alemão, o tenor Werner Güra veio em substituição a Giovanni Sala, originalmente anunciado. Apesar do belo timbre de Sala, que já tive a oportunidade de ouvir ao vivo, garanto que não saímos perdendo. Longe disso! Especialista no repertório de concerto, frequentador de grandes palcos, o experiente Güra, com o seu timbre claro e a sua dicção precisa de cantor de Lieder, foi um dos pontos altos da noite.

Acima, falei em “solistas de nível internacional”. É, sem dúvida, nessa categoria que se enquadram os dois brasileiros do quarteto: a mezzosoprano Luisa Francesconi e o barítono Paulo Szot. A presença deles na abertura dessa temporada emblemática da OSESP vem nos lembrar que temos artistas dos quais devemos nos orgulhar. A escalação da OSESP não poderia ter sido mais acertada.

Nessa Missa repleta de contrastes, em sua maioria sutis, foi memorável o efeito criado, no Gloria, pelo contraste ente o luminoso Gratias agimus tibi (…) Domine Deus, Agnus Dei Filius Patris, solado com brilho por Güra no allegro em dó maior, e o escuro e introspectivo Qui tollis peccata mundi, um andante em fá menor, interpretado com sensibilidade por Luisa Francesconi. Aliás, sensibilidade, dicção clara e fraseado lapidado, atento à escrita poética de Beethoven, foram marcas da intérprete. Merece destaque, ainda, a sua participação no final do Credo (Et vitam venturi saeculi): no Amen, Francesconi nos brindou com uma coloratura envolta por um impecável legato.

Uma das sutis e saborosas surpresas da Missa está no Credo. Beethoven delegou o anúncio da ressureição não às vozes claras e agudas, mas ao barítono. É verdade: a linha é ascendente, em tonalidade maior, e o andamento, allegro (ma non troppo!). Não deixa, contudo, de causar certa surpresa esse anúncio vindo do belo, mas sóbrio timbre de Paulo Szot. É como se o próprio Plutão estivesse anunciando a saída de Cristo do Hades. Foi com essa autoridade que Szot interpretou o seu solo, com o ótimo legato e a excelente emissão que caracterizaram toda a sua participação. Como é bom quando Paulo Szot canta com a OSESP.

Reconheço que tenho a tendência de me ater mais às vozes: é onde se concentram os meus estudos e a minha maior atenção. Apesar disso, nessa peça em que, ao contrário de outras obras sacras do Classicismo, não há árias ou duetos, o aspecto mais importante da atuação de cada solista está em sua relação com o conjunto. Não à toa citei, acima, a “intimidade na ambientação do texto para as passagens mais fervorosas”, presente na obra e apontada por Lockwood.

Também nesse aspecto foi exitoso o quarteto de solistas: não apenas as suas vozes se combinaram, timbraram muito bem, mas a sua interação com maestro, coro e orquestra foi perfeita. Para essa interação, contribuiu a sonoridade do Coro, que, desde 2000, quando passou a fazer parte da OSESP e foi modelado pela saudosa Naomi Munakata, é o melhor e mais sério coro brasileiro. A sonoridade redonda, homogênea, jamais gritada, jamais excessiva, sempre emocionante, sempre coesa, foi fundamental, sobretudo no começo, com um belo piano (Kyrie) e no final da Missa (Agnus Dei): sem ela, não teria funcionado o ciclo proposto por Beethoven. Graças à genialidade inovadora do mestre, a Missa começa e termina não só na mesma tonalidade (dó maior), mas com a mesma melodia. É uma melodia delicada e luminosa, que traz alento, esperança, e a certeza de que estamos indo para o mesmo lugar de onde saímos. Pura poesia.

Eu não poderia deixar de mencionar a alegria que senti, ao entrar, pela primeira vez no ano, na Sala São Paulo, e ver as estantes dos solistas na parte frontal do palco. Que bom! Finalmente a OSESP entendeu que, na teoria, pode fazer todo o sentido colocar os solistas no fundo do palco, como parte de um todo formado por orquestra e coro. Para além da teoria, no entanto, há algo com efeitos muito práticos que se chama “acústica”. Quando os solistas estão no fundo do palco, é difícil ouvi-los (são ouvidos, mas não com a mesma qualidade com que os ouvimos quando estão na parte frontal), e contra isso não há argumento teórico. A voz humana é um instrumento sensível e rico em detalhes.

Uma palavra sobre a incrível Sinfonia nº 1 de Brahms, executada na segunda parte do concerto. Grandiosa, começa um tanto fatalista, tem dois movimentos internos mais lentos (sem scherzo), cita Beethoven explicitamente e, ao contrário da Missa, não termina delicada e introspectiva, em piano, mas com um allegro (mais que isso: più allegro) e forte. A exemplo do que aconteceu na Missa, Fischer imprimiu-lhe uma leitura atenta, refinada, e a OSESP respondeu com uma sonoridade digna de uma orquestra madura. A plateia da quinta-feira demonstrou um entusiasmo maior com a Sinfonia que com a Missa, o que é, de certa forma, natural: além do próprio caráter da obra, é, ao contrário da Missa, bastante conhecida e já caiu no gosto do público.


Fotos retiradas das redes sociais da OSESP.
Na foto principal, Susanne Bernhard, Luisa Francesconi, Thierry Fischer, Werner Güra e Paulo Szot.

3 comentários

  1. Como sempre, Fabiana Crepaldi tem avaliações equilibradas e sensiveis sobre a obra e os intérpretes. Minha apreciação do espetáculo que assisti ao vivo cresceu muito após esta leitura. Uma pena a OSESP não ter mantido, ainda que temporariamente, sua tradicional live de sexta à noite. Atingiria um público muito maior.

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