Plínio Marcos em ótima dose dupla

Óperas de Leonardo Martinelli e Elodie Bouny estrearam bem no Theatro Municipal de São Paulo.

Theatro Municipal de São Paulo, 08 de abril de 2022.

Navalha na Carne (estreia mundial)
Música e libreto: Leonardo Martinelli
Direção cênica: Fernanda Maia
Elenco: Luisa Francesconi, Fernando Portari, Homero Velho.

Homens de Papel (estreia mundial)
Música: Elodie Bouny
Libreto: Hugo Possolo
Direção cênica: Zé Henrique de Paula
Elenco: Laryssa Alvarazi, Elaine Morais, Keila de Moraes, Elaine Martorano, Lidia Schäffer, Eduardo Góes, Eduardo Trindade, Rubens Medina, Fernando de Castro, Diógenes Gomes, Sebastião Teixeira, Rafael Leoni, Rafael Thomas.
Coro Lírico Municipal.

Direção musical: Roberto Minczuk
Orquestra Sinfônica Municipal

Depois de muita espera, finalmente estrearam no começo de abril, no Theatro Municipal de São Paulo, as óperas Navalha na Carne, de Leonardo Martinelli, e Homens de Papel, de Elodie Bouny, ambas baseadas na obra do dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999).

Encomendadas pelo Instituto Odeon (Organização Social que administrou o TMSP por pouco mais de três anos a partir de setembro/2017), as obras precisaram esperar um longo tempo para chegar ao palco, inicialmente devido às enrolações habituais do Odeon para efetivamente fechar os contratos com os compositores e incluir as obras na programação da casa paulistana; e, depois, quando finalmente foram agendadas, toda a temporada foi suspensa em virtude da pandemia de Covid-19. Méritos para a nova gestora do TMSP (Sustenidos Organização Social de Cultura), que manteve a dobradinha na programação.

Em carne viva

A crítica social e a presença de personagens marginais são duas características marcantes da produção de Plínio Marcos. Em Navalha na Carne, peça estreada em 1967, temas como machismo, homofobia e exploração da mulher são elevados à máxima potência. O cafetão Vado explora a prostituta Neusa Sueli não apenas financeiramente, mas, sobretudo, emocionalmente.

Ele a trata como um objeto que está sob o seu poder. Em determinado momento, chega a dizer referindo-se à amante: “De corpo é uma coisa que se pode aproveitar”. Ela, por sua vez, reflete pouco depois: “Às vezes, chego a pensar: será que sou gente? Será que eu, você, Veludo somos gente? Chego até a duvidar”. Os dois amantes e também Veludo (personagem homossexual que trabalha no hotel do tipo “pulgueiro” onde moram Neusa Sueli e Vado) são criaturas que apenas sobrevivem em meio a um cotidiano simplório, no qual os seus únicos escapes são o sexo e as drogas.

Durante a obra, cada personagem tenta sobrepor o seu domínio sobre os outros, seja através da violência, da humilhação ou da chantagem barata. Por vezes, dois se unem para subjugar o terceiro, mas em momento algum os três entram em acordo para enfrentarem juntos os percalços da existência.

Em sua adaptação para a ópera, Leonardo Martinelli utilizou o próprio texto da peça, apenas com cortes pontuais. A obra mescla trechos cantados (árias, duetos, tercetos, recitativos acompanhados) com algumas passagens apenas faladas (expediente que remete à opéra-comique francesa).

Na música, destacam-se especialmente as três árias (uma para cada personagem), em que o compositor alcança um alto nível de expressividade dramática; e também a rica e colorida orquestração de toda a obra – e, em particular, a utilização das madeiras.

A direção firme de Fernanda Maia contribuiu bastante para manter o espectador atento durante toda a encenação. A opção de mostrar os personagens separados (e em “carne viva”) na cena derradeira expressou muito bem a falta de união mencionada três parágrafos acima. O cenário funcional de Bruno Anselmo, valorizado pela luz de Fran Barros, e os figurinos de João Pimenta cumprem bem a função de ambientar o mundinho dos três sobreviventes.

Luisa Francesconi, Homero Velho e Fernando Portari em Navalha na Carne.

Na estreia de 08 de abril, a mezzosoprano Luisa Francesconi (Neusa Sueli), o tenor Fernando Portari (Vado) e o barítono Homero Velho (Veludo) mostraram-se bastante entrosados e dedicados em suas partes. Se a Francesconi tomou para si o destaque vocal da récita, com requintes de expressividade em sua ária (Andei pra baixo e pra cima), Velho foi o destaque cênico, equilibrando-se entre a afetação contida e a explosão ao deixar o quarto do casal. Portari ficou a meio caminho entre os dois.

Na primeira obra da noite, Roberto Minczuk conduziu a Orquestra Sinfônica Municipal com segurança, colocando a música a serviço do drama como poucas vezes se viu até hoje em sua atuação como regente de ópera.

Antes de seguir em frente, um aparte: ouvi no teatro alguns comentários por parte do público de que a obra seria “datada” – opinião da qual discordo veementemente. O machismo, a homofobia e a exploração do outro são doenças ainda muito vivas, atuais, em nossa sociedade ocidental – isso para não falar de países cuja cultura é extremamente opressora em relação às mulheres e aos homossexuais. O fato de que algumas pessoas não tenham contato direto, ou pelo menos tão extremo, com uma realidade assim tão crua quanto a apresentada na obra de Plínio Marcos não quer dizer que tal realidade não exista. O noticiário policial do Brasil e do mundo não me deixa mentir.

Exploração da fragilidade

Em Homens de Papel, de 1968, além do machismo e da violência contra a mulher, também são abordados temas como a exclusão social, a exploração dos menos favorecidos, a luta de classes, justiça com as próprias mãos e até a pedofilia.

Moradores de rua que catam papel para sobreviver são explorados por Berrão, um homem truculento que sempre anda armado e nunca paga um preço justo pelo trabalho realizado. Chicão, o catador mais revoltado, incita o grupo a não trabalhar na próxima noite, com o objetivo de gerar prejuízo a Berrão e obrigá-lo a tratar (e remunerar) mais condignamente o grupo.

A chegada de novos integrantes, no entanto, acaba atrapalhando os planos. Nhanha e Frido não podem se abster de trabalhar porque precisam de dinheiro para o tratamento de sua filha, Gá, que sofre de alguma síndrome não especificada. Coco sente-se atraído pela criança e, ao cometer abuso, acaba matando a menina. Quando os catadores percebem o que aconteceu, um linchamento dá cabo de Coco. A revolta contra Berrão perde força, e tudo continua como está: os fragilizados continuam sendo explorados; o explorador não enfrenta qualquer consequência.

Se Martinelli utilizou o próprio texto da peça de Plínio Marcos em sua ópera, Elodie Bouny compôs sobre um libreto de Hugo Possolo que apresenta adaptações em relação à obra original. O libretista mantém a trama principal, acrescenta passagens corais e reforça a questão social ao apresentar os catadores como uma gente esquecida, ignorada pela sociedade (“Homens e mulheres rasgados, pedaços de papel dobrados, amassados, amassados, na cidade que engole e devora”). Em comparação à de Martinelli, a música de Bouny apresenta maior caráter melódico em algumas passagens – o que facilita a sua audição por quem não está muito habituado à música contemporânea e, ao mesmo tempo, não é nenhum demérito.

A direção de Zé Henrique de Paula enfrenta bem os desafios da obra, extraindo boas atuações do elenco. Bruno Anselmomantém a funcionalidade do cenário, desta vez com uma luz (Fran Barros) mais convencional. Em seus figurinos, João Pimenta diferencia Berrão do “resto”, enfatizando a separação de classes.

No numeroso grupo de 13 solistas, destacaram-se Elaine Morais (Maria-Vai), Elaine Martorano (Nhanha), Sebastião Teixeira (Berrão) e Eduardo Góes (Giló), que se apresentaram cenicamente consistentes e vocalmente expressivos. Fernando de Castro interpretou com inteligência o controvertido Coco. Laryssa Alvarazi e Lidia Schäffer ofereceram bom rendimento como Gá e Noca, respectivamente.

Rafael Thomas (Tião), Eduardo Trindade (Pelado), Diógenes Gomes (Bichado), Keila de Moraes (Poquinha) e Rafael Leoni (Frido) foram menos expressivos, mas sem comprometer o nível geral da récita – ao contrário de Rubens Medina (Chicão), que cantou o tempo todo no limite do grito.

O Coro Lírico Municipal, preparado por Mário Zaccaro, passou longe de suas melhores performances, oferecendo uma sonoridade exagerada, estridente, desagradável mesmo aos ouvidos.

Roberto Minczuk manteve o nível da primeira ópera da noite na condução da Orquestra Sinfônica Municipal, mas, como diretor musical do espetáculo, não poderia ter permitido uma performance tão medíocre do coro.

Homens de Papel.

Fotos: Fabiana Stig.

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