Que Romeu e Julieta morram!

I Capuleti e I Montecchi, de Bellini: mais um bom espetáculo no Theatro São Pedro.

I Capuleti e I Montecchi (1830)
Música: Vincenzo Bellini (1801-1835)
Libreto: Felice Romani (1788-1865)
Ópera em dois atos. Estreia: 11 de março de 1830 no Teatro La Fenice, em Veneza.

Theatro São Pedro, 15 de abril de 2022.

Direção musical: Alessandro Sangiorgi
Direção cênica: Antônio Araújo

Romeo: Denise de Freitas
Giullieta: Carla Cottini
Tebaldo: Anibal Mancini
Lorenzo: Douglas Hahn
Capellio: Anderson Barbosa.

Orquestra do Theatro São Pedro
Coral Jovem do Estado

Quando Felice Romani escreveu seu libreto para Giulietta e Romeo, de Nicola Vaccaj, em 1825, e cinco anos mais tarde o modificou e adaptou para I Capuleti e I Montecchi, de Vincenzo Bellini, o tema da união política estava na moda na península italiana: era a época do Risorgimento, da campanha pela criação de um único Estado, a Itália. Era, pois, comum a utilização de textos que tratassem das trágicas consequências a que levavam a desunião dos italianos e os conflitos entre grupos políticos antagônicos, como os ocorridos nos séculos XII e XIII entre os guelfos, partidários do Papa, e os gibelinos, que defendiam os poderes do Sacro Império Romano.

Felice Romani visitou o tema mais de uma vez. Uma das vezes foi nos libretos já citados, ao tratar das batalhas ocorridas em Verona entre os Capuleti e os Montecchi, famílias que povoam o capítulo VI do Purgatório da Divina Comédia de Dante. A outra vez foi ao elaborar o texto de Francesca da Rimini para Saverio Mercadante, em 1831.

Segundo sua origem literária, com a publicação de Historia novellamente ritrovata di due nobili amanti con la pietosa loro morte intervenuta già nella città di Verona nel tempo del signor Bartolomeo della Scala, de Luigi Da Porto, em 1530, a disputa entre os Capuleti e os Montecchi se dá justamente porque os Capuleti são guelfos e os Montecchi, gibelinos. A pregação pela união italiana não era, contudo, a motivação de Da Porto: sua história, talvez em virtude de suas desilusões amorosas, termina questionando se também em seu tempo haveria mulheres tão fiéis e dispostas a morrer por seus amados quanto Giulietta. Mesmo assim, lá estavam estampadas as consequências das disputas entre os italianos, e o resgate da história servia bem ao gosto do início do século XIX.

Pouco mais de vinte anos depois de Da Porto, o escritor Matteo Bandello, também italiano, publicou sua versão da história. Em 1562, a obra de Bandello foi traduzida para o inglês, em forma de poema, por Arthur Brooke: The Tragicall Historye of Romeus and Juliet. Foi essa a principal fonte da célebre peça de Shakespeare.

Não é possível afirmar que Romani não tenha lido a obra de Shakespeare, mas é sabido que não foi Shakespeare sua fonte ao escrever os dois libretos sobre a trama. Segundo Michael Collins em The Literary Background of Bellini’s I Capuleti ed i Montecchi (1982), não é fácil determinar as fontes de Romani. Algumas peculiaridades de sua versão, contudo, aparecem em obras anteriores, como no libreto de Giuseppe Maria Foppa para a ópera Giulietta e Romeo (1796), de Niccolò Zingarelli (que por sua vez teria se baseado em Da Porto e em Bandello); no libreto do ballet Le Tombe di Verona, ossia Giulietta e Romeo, (1820) de Antonio Cherubini; e também na peça italiana Giulietta e Romeo (1818) de Luigi Scevola. É por isso que as pessoas acostumadas com a versão de Shakespeare notam importantes diferenças em alguns aspectos do enredo e nos personagens. Em Romani, Tebaldo é o prometido a Giulietta, Lorenzo não é frei, mas um amigo e conselheiro da família, uma espécie de médico, e, principalmente, conforme já observamos, a motivação da briga entre as famílias vem do fato de que pertencem a grupos políticos que estão em guerra. A disputa foi agravada porque Romeo matou o irmão de Giulietta durante uma batalha entre os guelfos e gibelinos. Além disso, o Romeo retratado não parece ser o jovenzinho da peça de Shakespeare, uma vez que é o líder dos gibelinos. A conclusão a que o libreto leva é óbvia: essa guerra, essa desunião entre italianos, só produz tragédia e morte.

Na última sexta-feira (15 de abril), I Capuleti e I Montecchi subiu ao palco do sempre acolhedor Theatro São Pedro após 16 anos – a produção anterior data de 2006 e foi a primeira encenação da ópera em São Paulo. Como nos nossos teatros de ópera as produções são descartáveis, a atual não aproveita nada da anterior, da qual, aliás, nada deve ter sobrado. A direção cênica ficou a cargo de Antônio Araújo, diretor artístico do Teatro da Vertigem. Segundo o programa e as redes sociais do teatro, os Capuleti/guelfos foram associados a milicianos e os Montecchi/gibelinos, a traficantes. Considerando que, conforme já exposto, não está em jogo a disputa entre clãs inimigos, como em Shakespeare, mas entre grupos políticos, pergunto ao leitor: é preferível que traficantes e milicianos cessem suas disputas, unam forças e conquistem cada vez mais território e poder político ou que Romeo e Giulietta sejam sacrificados? A minha resposta está estampada no título desse texto. Não me parece, pois, que faça muito sentido advogar contra divisões políticas utilizando esses grupos. Com tantos povos em guerra pelo mundo e tantos grupos políticos precisando se unir pelo Brasil, é possível imaginar inúmeros exemplos mais adequados ao deslocamento da trama.

Milicianos e traficantes.

Outra característica do tempo de Bellini era o gosto por mezzosoprano em papel travestido. Das três óperas citadas que têm Romeo e Giulietta como protagonistas, Romeo é interpretado por uma mezzo tanto na de Vaccaj quanto na de Bellini. Na de Zingarelli, um pouco anterior, ele é um castrato. Portando, nos três casos, o personagem foi concebido para uma voz com características femininas. A primeira ideia que pode ocorrer é que o timbre feminino indica a juventude de Romeo, um jovem apaixonado. Pode ser, mas esse é o Romeo de Shakespeare. O de Romani não é tão jovem, mas é um guerreiro, tem seu traço heroico, o que desde o barroco é um papel típico de castrato.

Mesmo com o fim da era dos castrati, o gosto pelo papel travestido, que não era uma novidade, permaneceu na Itália. Para justificar esse fato, autores como Federico Fornoni, em Il canto en travesti nel primo Ottocento fra risvolti erotici e idealizzazione amorosa (La Fenice, 2015), apontam a sensualidade despertada por esse tipo de voz e de personagem, assim como a ambiguidade quase hermafrodita criada. Essa sensualidade é reforçada pelo efeito causado pela combinação das duas vozes femininas – muito bem explorado por Bellini. Na ópera de Vaccaj, a mãe de Giulietta está presente, mas Romani a eliminou quando revisou o libreto para Bellini. Desse modo, em I Capuleti e I Montecchi as duas únicas vozes femininas são as do casal enamorado, que vive oprimido em um mundo povoado por tenores, barítonos e baixos. É evidente que não se trata de uma bandeira feminista da parte de Bellini, mas sim de uma forma de expressar musicalmente o antagonismo entre o casal e o resto do mundo. Esse efeito atinge o seu ápice no final do primeiro ato, na stretta do concertato, quando Romeo e Giulietta cantam em uníssono, tendo um coro masculino em contraponto. O compositor Hector Berlioz, ao assistir a ópera em 1831, reclamou, em suas Mémoires, da escolha da voz feminina (“Pour la troisième ou quatrième fois après Zingarelli et Vaccaï, écrire encore Roméo pour une femme!”), porém foi totalmente seduzido pela stretta do concertato, que considerou a passagem mais bem construída da ópera. Berlioz ressalta a frase viva, apaixonada, criada por Bellini, cantada em uníssono pelos dois personagens: “Ces deux voix, vibrant ensemble comme une seule, symbole d’une union parfaite, donnent à la mélodie une force d’impulsion extraordinaire; et, soit par l’encadrement de la phrase mélodique et la manière dont elle est ramenée, soit par l’étrangeté bien motivée de cet unisson auquel on est loin de s’attendre, soit enfin par la mélodie elle-même, j’avoue que j’ai été remué à l’improviste et que j’ai applaudi avec transport”.  

Berlioz aplaudiu com entusiasmo, e era essa a reação que eu esperava do público do Theatro São Pedro assim que a música parou de soar. Era isso o que mereciam os cantores, a orquestra e o maestro. Como a cena teatral continuou, no entanto, o público não seguiu aquele instinto natural, que é posto em prática há mais de duzentos anos, de aplaudir tão logo termina o concertato. Os aplausos vieram, mas após alguns instantes de um pesado silêncio.

É bom lembrar que, como boa parte da ópera, essa stretta também vem de Zaira, a ópera anterior de Bellini. Como dispunha de menos de dois meses para compor a ópera, Bellini resolveu adaptar boa parte da música de Zaira para I Capuleti. Em Zaira, também temos, na stretta, soprano e mezzosoprano, no caso Zaira e seu irmão Nerestano, respectivamente. Desse modo, a origem do papel travestido em I Capuleti não vem apenas de Vaccaj, mas também da própria ópera da qual Bellini reaproveitou grande parte da música.

O uso da música de Zaira não foi sem motivo: Bellini estava em Veneza, revisando a sua ópera Il Pirata para que a mezzosoprano Giudita Grisi pudesse cantar o papel de Imogene, e recebeu a encomenda da nova ópera a ser estreada em menos de dois meses. Bellini aproveitou boa parte de Zaira, e Romani, de seu Giulietta e Romeo. Bellini também aproveitou Grisi para criar o papel de Romeo.

Na produção do São Pedro, Araújo fez com que a ambiguidade andrógina do Romeo de Bellini pendesse para o lado feminino e o transformou em uma mulher. É uma mulher com uma boa dose de masculinidade, mas uma mulher. Na época de Bellini, as intérpretes dos papéis travestidos não se preocupavam, como as de hoje, em adotar atitudes masculinas para tornar seu personagem mais verossímil: o disfarce ficava por conta apenas do figurino. É, portanto, válida essa opção de Araújo, que traz ao palco um tema pertinente aos nossos dias sem romper com a estrutura criada pelo compositor.

A produção de Araújo, tão celebrada por uns e tão odiada por outros, teve os seus méritos e os seus problemas. Além dos pontos já discutidos, a utilização de todo o espaço do teatro, com coro e atores passando pelos corredores da plateia, foi bastante eficiente e causou excelente efeito. O mesmo, contudo, não pode ser dito em relação à cerca com postes e arames instalada na plateia. A ideia da cerca pode até ter sido interessante, mas a forma como foi executada trouxe um problema prático: criou um grande número de lugares com visão prejudicada.

Outro problema da produção foi utilizar as legendas para dar sentido ao que se via em cena. Em primeiro lugar, até onde entendo, as legendas não fazem parte do espetáculo, mas são mero elemento auxiliar para que o público compreenda o texto que está sendo cantado. Quem conhece o texto ou entende o idioma em que a ópera é cantada não tem motivo para desviar o olhar do palco e ler a legenda. Além disso, se a legenda não corresponde ao que está sendo cantado, as pessoas que precisam da tradução estão sendo enganadas. Isso gerou certa confusão entre aqueles que não conheciam a ópera – ouvi perguntas inesperadas sobre o enredo no intervalo e na saída. Em produções modernas, é comum que haja textos projetados no cenário. Isso é legítimo e bem diferente de adulterar a tradução do libreto.

Quando se quer tratar de todos os assuntos da atualidade através de uma ópera de bel canto, cujo foco está no canto, e não na riqueza literária do libreto, corre-se o risco de cair no protesto panfletário, esvaziado de sentido. Um exemplo ocorre no segundo ato. Após ingerir o antídoto, Giulietta se passa por morta. O cortejo com coro, através dos corredores, foi impactante e de grande beleza tanto cênica quanto musical, contudo o caixão estava lacrado, envolto em plástico, e carregado por pessoas vestindo aquela roupa usada para evitar a contaminação por covid. Entendo, portanto, que a suspeita era de que Giulietta havia morrido de covid. Sem dúvida a ideia era fazer mais um legítimo protesto contra o governo federal, dessa vez em relação ao descaso com a pandemia e suas vítimas, mas Giulietta não estava morta! Esse protesto pode ser, portanto, facilmente convertido em reafirmação do discurso negacionista de que muitas mortes por covid foram falsificadas.

Musicalmente, talvez na récita de estreia, 15 de abril, o desempenho de alguns cantores tenha sido um pouco comprometido pela intensa rotina de ensaios e pelo ensaio geral, ocorrido na véspera. Algumas vozes exibiam sinais de cansaço. Foi esse o caso de Aníbal Mancini, que, mesmo com seu belo timbre, entregou um Tebaldo um pouco aquém do esperado, mas não foi o de Douglas Hahn, um digno e seguro Lorenzo, que, aliás, foi muito bem caracterizado pela produção para deixar claro que o Lorenzo de Bellini e Romani nada tem de frei: é médico e conselheiro da família. Anderson Barbosa, que interpretou Capellio, o pai de Giulietta, parecia estar com algum problema vocal ou de saúde, e sem as condições vocais necessárias para cantar.

Denise de Freitas e Carla Cottini, mezzosoprano e soprano, foram, respectivamente, Romeo e Giulietta. Nesse ponto é preciso lembrar que a ópera de Bellini, embora não excessivamente ornamentada, é puro bel canto. Como dizia Maria Callas, bel canto não é canto bonito, mas Canto! Aí está toda a técnica do canto da ópera italiana. De todos os cantores, é, portanto, esperado domínio técnico, capacidade de ornamentação, alguns agudos e uma boa dose de carga dramática. Carla Cottini fez uma Giulietta jovem, frágil, delicada, que salientou o intimismo da obra (em contraste com Il Pirata e Norma, por exemplo) e encantou o público. À sua Giulietta, porém, faltou um pouco de consistência vocal e liberdade nos agudos e nas coloraturas, que não fluíram. Sua voz sempre recuava nas notas mais altas e sua dinâmica ficou limitada.

Durante parte do século XIX, era usual substituir a cena final da ópera de Bellini pela de Giulietta e Romeo, de Vaccaj, considerada melhor e mais dramática. Mais extenso, com o dobro da duração, no final de Vaccaj Giulietta tem um papel bem maior que no de Bellini, no qual Romeo predomina, e, ao acordar, atira pedras para todos os lados: chama Lorenzo de assassino e joga toda a culpa nele, briga com o pai, fica um bom tempo pedindo um punhal… O que Denise de Freitas fez na récita de estreia foi comprovar inequivocamente a qualidade e a superioridade do conciso final de Bellini. Sua última ária, Deh! Tu, bell’anima, foi sem dúvida o ponto alto da noite, um momento mágico. Desde o belo e delicado pianíssimo com o qual se dirigiu à bell’anima de Giulietta, até a emoção com que se queixou de que a amada não poderia tê-lo deixado assim com a sua dor (non puoi, nel mio dolor!), Denise não apenas cantou muitíssimo bem: ela foi verdadeira, e sua emoção, contagiante. Esse memorável final coroou uma apresentação de altíssimo nível, na qual Denise brindou o público com sua voz poderosa, sua técnica segura e sua interpretação contundente.

Denise de Freitas e Carla Cottini na cena final de I Capuleti e I Montecchi.

Sob a batuta de Alessandro Sangiorgi, a Orquestra do Theatro São Pedro desempenhou de forma bastante satisfatória o seu papel. Não houve cantor encoberto, mesmo quando os artistas foram colocados cantando de costas no fundo do palco (!). Os diversos solos presentes na partitura foram todos muito bem executados. A música fluiu com naturalidade e beleza. Foi, sem dúvida, um belo trabalho musical.

Mais uma vez, com dedicação e esforço, o Theatro São Pedro entregou um resultado digno. Se a produção é controversa, se não agrada a todos, isso faz parte do jogo! Se nem todos os cantores possuem a mesma qualidade técnica, isso é o que acontece em todos os espetáculos de todos os teatros do mundo. O que importa é que o Theatro São Pedro está trilhando um bom caminho, construindo um projeto consistente, fazendo ópera de boa qualidade e atraindo cada vez mais público jovem. Que esse projeto tenha vida longa e conquiste o reconhecimento e o apoio do governo estadual.

Fotos: Heloísa Bortz.

Um comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *