Renata Scotto: “eu sempre quis ser uma atriz que canta”

Artista imensa, a soprano nos deixou no dia 16 de agosto, aos 89 anos.

“Eu não lembro de quando eu não cantava, eu não lembro quando eu comecei, porque eu sempre cantei”, declarou Renata Scotto, em entrevista concedida a Mildred Clary, da France Musique, em 1997, ao contar que começou a cantar ainda pequena, provavelmente aos quatro anos. Foi o que pensei, na quarta-feira, 16 de agosto, quando o dia começou com a triste notícia de sua morte, em Savona, aos 89 anos: não só a minha geração, mas também a geração anterior à minha não se lembra de um tempo em que Scotto não cantava, não se lembra da ópera sem Scotto – sua voz e seu estilo fazem parte das nossas referências auditivas.

Renata Scotto nasceu em Savona (Itália), no dia 24 de fevereiro de 1934, no seio de uma família simples: seu pai era policial, sua mãe, costureira. Sua família amava a música, embora não houvesse músicos. Segundo contou na entrevista, foi seu tio Salvatore, um pescador melômano e que sempre lhe pedia para cantar, que a levou para ver uma ópera pela primeira vez, no Teatro Chiabrera, de Savona, quando ela tinha 12 anos: foi Rigoletto, com Tito Gobbi – “Tanto tempo depois, sua voz ainda ressoa nos meus ouvidos”, declarou em entrevista publicada em 2015 na Opéra Magazine. Foi “um verdadeiro choque, e a descoberta de um mundo incrível, feito de músicas sublimes e, ao mesmo tempo, tão imediatamente acessíveis… No caminho de volta, eu estava convencida, eu seria cantora!”.  Não à toa, quando, anos mais tarde, cantou Gilda, em Rigoletto, ao lado de Gobbi, disse ter sido uma das maiores emoções da sua vida.

O mesmo tio Salvatore financiou os seus primeiros estudos musicais, em Milão. Aos 14, ela foi à cidade para fazer audição com o seu futuro professor, o barítono Emilio Ghirardini. Ao ver uma pretendente a aluna tão jovem, o mestre disse que nem queria ouvir. “Mas eu quero cantar”, retrucou a já determinada Scotto, que, de fato, cantou – como mezzosoprano, como Azucena! Ghirardini reconheceu que ela tinha uma bela voz, mas era jovem demais: recomendou que estudasse música por dois anos e, após esse período, voltasse para ter aulas com ele. Assim foi feito, e ela estudou dos 16 aos 18 anos, período no qual encontrou o seu registro de soprano.

Em 1952, ganhou o concurso da Associazione Lirica di Milano. Parte do prêmio era cantar, em julho do ano seguinte, Violetta, em La Traviata, no Teatro Nuovo, em Milão, um teatro onde estreavam jovens talentos. Como Ghirardini a havia aconselhado a não estrear direto em um teatro importante, com críticos na plateia, seu tio conseguiu que o pequeno teatro de Savona, onde a diva viu a sua primeira ópera, produzisse, no final de 1952, uma Traviata para que ela pudesse estrear lá. Foi assim que, aos 18 anos, a grande Renata Scotto entrou em cena, com o teatro lotado de familiares e amigos, dando início a uma gloriosa carreira de prima donna.

Durante os dois anos seguintes, Scotto cantou Cio-Cio-San em Madama Butterfly, Violeta em La Traviata, Liù em Turandot… foi demais para ela, sua técnica tinha problemas. Quando dividiu o palco com Alfredo Kraus em uma Traviata, ele a alertou e indicou a sua própria professora, a soprano espanhola Mercedes Llopart. Foi assim que, aos 20 anos, Scotto encontrou aquela que considerou a professora certa para ela e reaprendeu a cantar: cancelou todos os seus contratos e passou seis meses sem se apresentar, fazendo apenas vocalises. “Com Mercedes Llopart, eu aprendi realmente a ‘pensar’ minha voz como um instrumento, e também a ter a segurança da técnica em todas as circunstâncias”, contou à Opéra Magazine. Mas a coisa mais importante que aprendeu com Llopart foi que, no início de carreira, um cantor não deve cantar papéis que exijam uma interpretação muito forte, que forcem a voz por conta de o caráter do personagem ser dramático demais. Desse modo, os papéis escolhidos foram na linha de Amina, de La Sonnambula, por sua expressão romântica e por não forçar a voz, e de Adina, de L’Elisir d’Amore.

Para Scotto, era extremamente importante transmitir o caráter do personagem, um caráter crível. Amava atuar, fazer teatro: “eu sempre quis ser uma atriz que canta”, disse à France Musique. Em Lisboa, foi doppione de Maria Callas em La Traviata, e foi aí que aprendeu o que significava estar em cena: ser “uma ‘prima donna’, uma diva, mas não para mim mesma, Callas era uma diva não para si mesma, mas para o público. Essa era a grandeza de Callas”, contou Scotto. “Em cena, Callas nunca cantou para si mesma, ela sempre cantou para o público, e eu aprendi com ela”. Scotto contou que teve, no Teatro alla Scala, o mesmo “professor de partitura” de Callas, que lhe contou que Callas ficava lá estudando de quatro a seis horas. “Eu nunca esqueci disso! Nunca! Eu me disse: é isso o que eu vou fazer!”. Para ela, isso é ser um artista profissional: “o intérprete é um mediador, ele cria alguma coisa que já existe, (…) ele é um criador na cena, que deve ser totalmente profissional ao se preparar. Eu não canso de repetir aos jovens: profissionalismo, preparação e, depois, em cena, criem!”.

Construção da carreira

Segundo Scotto, para a construção de sua carreira, ela respeitou cada etapa. Ela se dedicava a um compositor de cada vez e, dentro das obras desse compositor, foi caminhando em direção aos papéis mais dramáticos. Quando cantou Bellini, começou com Amina de La Sonnambula, que é um papel difícil, mas mais leve, natural, não força a voz, e Giulietta em I Capuleti e i Montecchi. Passou a La Straniera, I Puritani e Zaira, cujos papéis são um pouco mais dramáticos, “era o caminho que poderia me conduzir a ‘Norma’”, afirmou na rádio, “e um dia eu também cantei ‘Norma’”.

De Verdi, conta que cantou Rigoletto, La Traviata e, depois, I Lombardi e I Vespri Siciliani, bons para a voz que tinha na época, já que são papeis dramáticos, mas leves, com muita coloratura, pianissimi, legato e tessitura alta. Depois vieram os outros papéis, de Otello a Macbeth, passando por Nabucco (que apenas gravou, nunca cantou em cena) e Don Carlo. “Lady Macbeth foi escrito para soprano, Verdi sempre escreveu para soprano, e para cantar Verdi, a soprano deve ter três oitavas – e coloratura, e ‘pianissimi’, e ‘legatissimi’, e expressão, e ‘parola’… tudo! Se você compreende o que Verdi quer, você pode cantar Verdi; caso contrário, não cantará”.

“Puccini é um estilo diferente, que vem depois de Verdi”, disse Scotto à France Musique. “Puccini precisa sempre de paixão vocal. Se Verdi tem cinco páginas de música para dizer o que ele quer, Puccini tem uma! Em uma página, você tem o recitativo, o ‘cantabile’, a ária, (…) tem que saber exatamente o que vai fazer com a voz”.

Macbeth (The Metropolitan Opera, 1982) 

Scotto admitia: ela era temperamental. “Eu não sou temperamental apenas porque a história diz que a ‘prima donna’ tem que ser temperamental”, afirmou Scotto no excelente documentário da Dallas Civic Opera, de 1979, sobre a estreia de Scotto como Manon Lescaut, disponível no YouTube. “Eu sou difícil porque eu sei o que eu quero, eu sei o que eu posso fazer e eu sei a hora certa, do meu jeito”. Ela dizia que o cantor é a parte mais importante de uma produção. Isso me chamou a atenção, porque atualmente tenho visto pessoas cujos nomes, quando muito, aparecem em notas de rodapé de um programa de ópera se achando no direito de criticar as exigências de cantores “temperamentais”, sem se lembrar que são esses cantores que ficam expostos diante do público, que são eles que terão que emprestar as suas vidas a os seus personagens, e que são eles que sabem, melhor que ninguém, do que necessitam, que conhecem os seus pontos fortes e as suas limitações – não só do ponto de vista vocal, mas também físico e emocional.

No documentário, Scotto também contou que sempre ensaiava com plena voz: “eu tenho que ensaiar como as partes se encaixam à minha voz não apenas quando estou cantando de pé à frente do piano, mas também quando estou me movendo, a minha técnica vocal tem que estar segura para transmitir as palavras e as linhas do ‘bel canto’ e, então, passar para o drama” – para ela, “bel canto” significava “cantar bem”.

Da Itália aos Estados Unidos

Scotto como Walter em La Wally, em sua estreia no La Scala (1953)

Scotto subiu ao palco do La Scalla pela primeira vez em 7 de dezembro de 1953, na abertura da temporada 1953/54, como Walter, em La Wally, de Catalani. No pódio, Carlo Maria Giulini; como protagonistas, Renata Tebaldi e Mario del Monaco. Apesar de não ter gostado da ideia (de Catalani!) de ter uma mulher no papel de Walter e de ter achado o nariz de Scotto pequeno demais, a regista Tatiana Pavlova acabou aceitando a soprano – com um nariz extra, de plástico, sobre o seu natural.

Foi como doppione de Callas, no entanto, que Scotto atingiu a fama e deu a verdadeira largada em sua carreira. Em agosto de 1957, no Festival de Edimburgo, Callas foi Amina em quatro récitas da produção do La Scala de La Sonnambula, conforme estabelecido em contrato. A quinta, extra, deixou com Scotto. Foi um sucesso tão grande a ponto de a relação entre as duas divas ficar estremecida. Isso é o que reza a lenda, mas um suposto estremecimento das relações, provavelmente, veio por conta da intransigência dos fanáticos por Callas, que se sentiam à vontade para ficar gritando “Maria! Maria!” ou “Viva Callas!” enquanto outras divas tentavam cantar. Isso aconteceu pelo menos duas vezes com Scotto: enquanto cantava I Vespri Siciliani, no La Scala, em 1970, com Callas na plateia, e Norma, no Metropolitan, em 1981, quando Callas até já havia morrido.

L’Elisir d’Amore (La Scala, 1958)

Em abril de 1958, Scotto voltou ao La Scala, mas dessa vez como prima donna: Adina em L’Elisir d’Amore – papel no qual já havia estreado, no mesmo teatro, cantando uma única récita, logo após a Amina de Edimburgo. No ano seguinte, em janeiro, estreou como Mimì em La Bohème, um de seus papéis emblemáticos. Em 7 de dezembro de 1970, abriu pela última vez a temporada do La Scala como La Duchessa Elena em I Vespri Siciliani, com Callas na plateia, quando ocorreu o incidente com os adoradores de Callas. Foi a última ópera da qual participou na casa. Despediu-se definitivamente do La Scala em junho de 1985, em um recital ao lado do pianista Leone Magiera.

I Vespri Siciliani (La Scala, 1970)

Entre as décadas de 1960 e 1980, Renata Scotto foi presença constante nos importantes teatros do mundo. Foi o Metropolitan Opera, porém, que mais marcou a sua carreira: entre outubro de 1965 e janeiro de 1987, subiu 314 vezes ao palco do Met, em 26 títulos. Na lista, estão: Madama Butterfly, La Bohème (foi Mimì e Musetta), Il Trittico (cantou nas três óperas), Tosca e Manon Lescaut, de Puccini; Lucia di Lammermoor e L’Elisir d’Amore, de Donizetti; La Sonnambula e Norma, de Bellini; La Traviata, Rigoletto, I Vespri Siciliani, Luisa Miller, Otello, Il Trovatore, Don Carlo e Macbeth, de Verdi; La Gioconda, de Ponchielli; Adriana Lecouvreur, de Cilea; Francesca da Rimini, de Zandonai; La Clemenza di Tito, de Mozart; Faust, de Gounod; Le Prophète, de Meyerbeer.

Como ela passava mais tempo nos Estados Unidos que na Itália, e queria ficar perto da família, na década de 1970 se mudou para Nova York com os seus dois filhos, Laura e Filippo, e com o marido, o violinista Lorenzo Anselmi, que abandonou a sua carreira e a orquestra do La Scala para seguir a esposa. Ele se tornou o seu pianista acompanhador e empresário. “A decisão mais séria que um homem pode tomar é deixar a sua própria carreira para se dedicar à de sua esposa”, dizia Scotto. Anselmi morreu em 2021, dois anos antes de Renata.   

Scotto em Madama Butterfly, em sua estreia no Old Met (1965)

Foi como Cio-Cio-San, em Madama Butterfly, que Renata Scotto estreou no Metropolitan, ainda no Old Met, em 13 de outubro de 1965; foi, também, como Cio-Cio-San que, mais de 20 anos depois, em 17 de janeiro de 1987, se despediu do teatro, atuando também, pela primeira vez, como diretora cênica. Scotto contou à France Musique que Butterfly a acompanhou pela vida toda, porque a sua professora lhe disse: “’Butterfly’ é para você, porque você dá a ‘Butterfly’ a expressão que é necessária ao personagem”. Em quase todos os teatros por onde passou, Scotto cantou Butterfly.

No New York Herald Tribune, o crítico Louis Snyder escreveu sobre a estreia de Scotto no Met:

“Uma soprano italiana muito aclamada, Renata Scotto, de quem há muito se ouvia falar, mas nunca havia sido ouvida em Nova York, finalmente fez sua estreia no Metropolitan Opera na noite de quarta-feira, no papel-título da primeira apresentação da temporada de ‘Madama Butterfly’. Foi uma ocasião de júbilo, e houve muita alegria na forma de aplausos e gritos de boas-vindas à nova artista (…).

Miss Scotto, como ‘prima donna’, remete aos dias em que se presumia que, para ser importada pelo Met, era preciso ter voz e experiência substanciais, e o teste de Nova York era a comunicação da personalidade. Na noite de quarta-feira, a Srta. Scotto chegou com todos os três, e se ela seguiu seu próprio caminho ao interpretar Cio-Cio-San – ou seja, fora dos limites impostos pela produção eficaz de Aoyama -, quase ninguém se importou.

(…) ela canta de forma musical e tocante, com pathos, cor e humor na voz, de modo a envolver o ouvinte na primeira fila da plateia ou na última fila do Family Circle (…)”

Scotto e Pavarotti em La Bohème, inaugurando o Live from the Met Telecast (The Metropolitan Opera, 1977)

Renata Scotto deixou profundas marcas nos antigos frequentadores do teatro novaiorquino e, passados mais de trinta anos de sua despedida da casa, sua memória permanece viva. No ano passado, em um dos intervalos de um Don Carlo em uma noite gelada e chuvosa, com bom elenco e casa vazia, um antigo frequentador que estava sentado próximo a mim falou: “Sabe qual foi a melhor Elisabetta que eu vi aqui? Renata Scotto!”. Em 2020, durante o confinamento em função da pandemia de Covid-19, o Met transmitiu, por streaming, a emblemática La Bohème de 1977, com Scotto e Pavarotti – o primeiro vídeo da série Live from the Met, do canal público PBS. Na época, troquei algumas mensagens com um amigo de lá, o professor de piano William Daghlian, que frequenta o Met desde 1968, quando se mudou para Nova York, onde se formou como músico. Daghlian me contou que viu Scotto no auge, que assistiu a essa La Bohème ao vivo e se lembra dela até hoje. Ele também viu a Madama Butterfly com que a diva se despediu do Met: “ela já estava sem voz, era somente um fiozinho, mas nunca ouvi uma Butterfly sublime como aquela, simplesmente divina”. Só uma grande artista é capaz de produzir esse tipo de magia.

Scotto em Madama Butterfly, em sua despedida do Metropolitan Opera (1987)

Professora de interpretação e diretora cênica

Quando a direção do Met lhe comunicou que ela iria fazer outra Butterfly em 1986, Renata Scotto recusou: já havia feito muitas, cantou Butterfly quase todos os anos durante a década de 1970, já era demais. Propuseram-lhe então que, além de cantar, fosse a diretora de cena. A produção era a de Yoshio Aoyama, na qual ela já havia cantado tantas vezes desde a sua chegada no Met. Aceitou e estreou como diretora cênica.

Scotto sempre gostou de atuar, sempre se interessou pelo teatro, por trabalhar o seu personagem junto com os diretores de cena, pelo cenário, pela iluminação… Era quase natural que passasse a dirigir. Dirigiu principalmente óperas que faziam parte do seu repertório, mas não exclusivamente.

Em entrevista à revista eletrônica espanhola Platea Magazine, quando questionada sobre produções tradicionais ou modernas, Scotto disse que ficava no caminho do meio: “Não gosto dos espetáculos ‘antiquados’ e acho que nem todas as tradições merecem ser conservadas. As tradições são boas quando são estabelecidas por pessoas que dedicaram um esforço particularmente importante para levá-las a cabo e quando tiveram uma grande repercussão em seu início, como acontece com o trabalho de Giancarlo Menotti ou [Franco] Zeffirelli. São produções que atualmente nos parecem muito clássicas, mas que por tudo isso vale a pena mantê-las. Mas o que é ‘antiquado’ deve desaparecer”.

Para ela, no entanto, a música e o libreto têm que ser respeitados: “nunca se deve alterar o libreto”. Ela gostava de fazer pequenas alterações, mas rejeitava as alterações que não tivessem a ver com a música ou que alterassem o libreto. Para ela, não se deve transladar óperas que tratem de fatos históricos específicos: “Se você põe em cena uma ‘Tosca’, as palavras se adaptam à época de Napoleão. Como você faz para transladá-la, por exemplo, ao nazismo de Hitler?”

Sobre sua visão cênica, Scotto afirmou: “me encantam a luz e o minimalismo. Creio que não seja necessário colocar coisas demais em cena para que uma produção funcione, mas adoro, sim, o bom gosto na hora de desenhar o figurino, as luzes e, com certeza, creio em ressaltar a música através da recitação. É nisso que consiste a direção de cena”.

Scotto amava ensinar, sobretudo jovens cantores que ela achava que tinham talento. Ela não era professora de técnica vocal, mas ensinava estilo de canto, interpretação. Deu aulas na Academia de Santa Cecília, na Julliard School, na academia de canto que levava o seu nome, em Albissola Marina (uma província de Savona), e realizou masterclasses em diversos lugares do mundo – inclusive no Brasil. Com seus alunos, trabalhava interpretação e as peculiaridades estilísticas de cada época.     

Scotto ministrando uma master class com a soprano Brenda Rae e a pianista In Sun Suh no Symphony Space, em Nova York, em 2007 (foto: Jennifer Taylor / The New York Times)

Renata Scotto no Brasil

Renata Scotto veio duas vezes ao Brasil: em 1991 deu masterclass e fez dois concertos no Theatro Municipal de São Paulo; em 1997, foi a vez do Municipal do Rio de Janeiro, onde ela fez a ópera A Voz Humana.

Foi fácil encontrar informações oficiais sobre a apresentação de Scotto no Municipal do Rio: o programa digitalizado está disponível no precioso site da rede de museus do Estado do Rio de Janeiro, onde pode ser acessado o acervo digitalizado do Centro de Documentação da Fundação Theatro Municipal. Por outro lado, os concertos realizados em São Paulo foram um mistério para o qual precisei da ajuda de várias pessoas para desvendar.

Foto autografada por Scotto em 1991 no Theatro Municipal de São Paulo (gentilmente fornecida por Emílio Kalil).

Graças aos arquivos de Sérgio Arruda, um apaixonado por ópera, sabemos que Scotto se apresentou em São Paulo nos dias 18 e 21 de agosto de 1991. No primeiro dia, um domingo, ela cantou árias de ópera ao lado da Orquestra Sinfônica Municipal e sob a regência de David Machado. No segundo, quando, além de algumas árias de ópera, cantou canções italianas e espanholas, foi acompanhada ao piano por Cliff Jackson.

Fiquei sabendo que Scotto havia cantado em São Paulo graças a uma publicação que o diretor cênico carioca André Heller-Lopes fez em sua página do Facebook no dia da morte da cantora. Ele contou que veio a São Paulo só para ver Renata Scotto cantar: “ida e volta de ônibus, no mesmo dia”, escreveu o diretor que, graças a um paulistano que se dispôs a comprar ingresso para ele, conseguiu um lugar na galeria. Perguntei sobre a apresentação, e ele me contou que viu o concerto com orquestra, onde ela cantou, dentre outras árias: Se come voi piccina io fossi, de Le Villi, de Puccini; Ebben? Ne andrò lontana, de La Wally, de Catalani; e Tu che le vanità, de Don Carlo, de Verdi.

Denis Molitsas, um importante preservador do acervo musical brasileiro, que esteve nos dois concertos, contou que os ingressos foram postos à venda alguns dias antes e que, às seis horas da manhã, já havia uma fila na frente da bilheteria do teatro (que abriria apenas às 10h). Segundo ele, a voz de Scotto já estava comprometida pela idade e pelos quarenta anos de carreira, o que pôde ser notado mais no recital com piano, no qual a voz ficou mais exposta. A artista, no entanto, estava lá: ele se lembra até hoje da forma como ela cantou Del cabello más sutil, de Fernando Obradors, sobretudo do final da canção, quando o piano parou e ela continuou sustentando um pianíssimo que levou o público ao delírio. Segundo ele, após o concerto, formou-se uma longa fila, e Scotto, com um sorriso nos lábios, atendeu a todos sem pressa: autografou programas, conversou e tirou fotos. Como ela mesma afirmou, era uma diva para o público, não para si mesma.

Ao contrário do Municipal de São Paulo, que está sempre passando a borracha em seu passado, o do Rio publicou rapidamente, nas redes sociais, uma nota lamentando a morte de Scotto e lembrando da passagem dela pela casa: “Faleceu na manhã desta quarta-feira (16), aos 89 anos, a cantora italiana Renata Scotto, uma das mais importantes sopranos mundiais. No palco do Theatro Municipal, Renata se apresentou na ópera ‘A Voz Humana’ apresentada na Temporada de 1997”.

Primeira página do programa de A Voz Humana e O Castelo do Barba Azul no Theatro Municipal do Rio de Janeiro (1997)

Nos dias 23 e 26 de outubro de 1997, Renata Scotto foi Elle em La Voix Humaine, de Poulenc, no Theatro Municipal carioca. O curioso – e quase assustador para quem frequenta os teatros brasileiros hoje em dia – é que essa Voz Humana quase divina fez dobradinha com O Castelo do Barba Azul, de Bartók, tendo Eva Marton como Judith! Duas óperas com duas grandes divas na mesma noite!

Bruno Furlanetto, um apaixonado por ópera que há décadas trabalha no teatro, contou que “’O Castelo’ teve uma atuação memorável de Eva Marton” (apesar do resfriado que ela havia contraído) e “regência maravilhosa do Gabor Ötvös”. Como espetáculo, no entanto, para ele “maravilhosa foi ‘A Voz Humana’. A Scotto, vocalmente perfeita e atriz de primeira linha”. A concepção e a direção cênica foram de Alberto Renaud. Segundo Furlanetto, o cenário era “praticamente abstrato, feito só com carpete cinza (piso e paredes sem nenhum objeto ou cama), no qual a Scotto podia se movimentar ao seu bel-prazer, mas sob o olhar implacável do Alberto. A Scotto gostou tanto que mandou buscar a produção no ano seguinte, para cantar a ópera em Turim (em 1999)”. Ainda segundo ele, “Ötvös e Scotto se entenderam, e você não sabia o que era de um ou do outro. (…) Ela ficou satisfeita e pôde, assim, junto com a filha, ir às compras, no que ela era insaciável…”

Outros testemunhos dão conta de que Scotto, de fato, se movimentou ao seu bel prazer. A essas alturas, já fazia uma década que ela havia estreado como diretora de cena e, na fase da vida em que estava, com mais de sessenta anos de idade e quarenta de carreira, pouco se interessou pelas ideias do diretor: fez Elle como quis, deu via à sua personagem.

Paulo Abrão Esper, diretor da Cia. Ópera São Paulo, que desde 1993 promove o Concurso Brasileiro de Canto ‘Maria Callas’, falou com Scotto em 24 de fevereiro, em seu último aniversário. Contou que estava lúcida, com boa memória. Ele a viu ao vivo pela primeira vez em São Paulo, em 1991, e, em 97, passou alguns dias com ela no Rio de Janeiro, quando assistiu à Voz Humana. Depois disso, foram colegas de júri no concurso Ottavio Zino, em Roma, em 2008. Segundo Esper, Scotto disse ter ficado feliz em saber que no Brasil havia um concurso com o nome de Maria Callas, lembrando que foi substituindo Callas, em Edimburgo, que a sua carreira deslanchou.

Renata Scotto foi a última das grandes divas do Século XX, foi uma imensa e verdadeira artista: uma atriz que cantava, como ela queria ser, mas que cantava e atuava com toda a profundidade, com toda a sensibilidade, sem jamais abandonar o bel canto. Uma diva que cantava para o público, que conseguia viver e transmitir o caráter de cada personagem. Scotto foi Amina, foi Lucia, foi Norma, foi Violetta, foi Cio-Cio-San… foi tantas e foi única.

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Foto de destaque: Scoto como Elisabetta di Valois em “Don Carlo” – The Metropolitan Opera, 1979.

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