“Riders to the Sea” abre a temporada 2024 do Theatro São Pedro

A ópera de Vaughan Williams fica em cartaz até dia 10 de março.

Riders to the Sea (1937)
Ópera em 1 ato
Música: Ralph Vaughan Williams (1872-1958)
Libreto baseado na obra homônima de John Millington Synge (1871-1909)
Theatro São Pedro, 03 de março de 2024
Direção musical: Cláudio Cruz
Direção cênica: Caetano Vilela
Cenografia e Iluminação: Caetano Vilela
Figurinos: Juliana Bertolini
Visagismo: Tiça Camargo
Maurya: Lidia Schäffer, mezzosoprano
Cathlenn: Elisa Braga, soprano
Nora: Raquel Paulin, soprano
Bartley: Rafael Siano, barítono
Orquestra do Theatro São Pedro

No último dia 1º de março, o Theatro São Pedro, de São Paulo, abriu a sua temporada 2024 com Riders to the Sea (Cavaleiros ao mar), obra-prima do compositor inglês Ralph Vaughan Williams (1872-1958). Composta a partir da peça homônima do escritor irlandês John Millington Synge (1871-1909), a ópera se passa em uma pequena vila marítima irlandesa e apresenta a família de Maurya, que perdeu para o mar o sogro, o marido e todos os seus filhos.

Quando a ópera começa, ainda resta Bartley, o último filho sobrevivente, e Maurya está esperando que as águas devolvam o corpo de Michael para que ele tenha um sepultamento digno. Bartley, no entanto, também parte para o mar, para ir a uma feira de cavalos, e Maurya sabe que, ao cair da noite, não terá mais filhos vivos. No fim da ópera, restam apenas as mulheres, que não vão ao mar: Maurya e suas duas filhas, Cathleen e Nora. “Agora todos eles se foram, e não há nada mais que o mar possa me fazer”, diz Maurya, em uma mistura de dor, conformismo e até certo alívio. “Agora não tenho necessidade de ficar acordada chorando e rezando quando o vento vem do sul. (…) agora terei um grande descanso, e com certeza está na hora (…). Agora eles estão todos juntos, e o fim chegou (…). Ninguém pode viver para sempre, e devemos ficar satisfeitos”.

É através do mar que os habitantes da vila obtêm tudo o que precisam para a sua subsistência, é o mar que os liga ao resto do mundo, é o mar que guia as suas vidas; mas é esse mesmo mar que os amedronta constantemente. Esse mar envolvente, ameaçador, faz-se ouvir o tempo todo na música, com o som grave das cordas e das madeiras. O ritmo do mar está presente mesmo no poema de Synge, ao qual Vaughan Williams foi fiel quando compôs a ópera. Também na bela produção de Caetano Vilela (que, além da encenação, foi responsável pela iluminação e pela concepção cenográfica) o mar se fez presente – nunca visto explicitamente, salvo em algumas discretas e translúcidas projeções, mas sempre presente.

No programa de sala, Vilela explica que, para situar a ação em um espaço simbólico, baseou-se nas soluções do arquiteto e cenógrafo Pedro Levorin. Segundo o encenador, as rampas desniveladas dão a “ideia de que esta casa está num penhasco, à beira de um precipício, com as rochas brancas do fundo do mar presentes em um plano inferior. Também há um teto que engole a casa, como se fosse uma grande onda do mar que paira sobre os personagens”.

Elisa Braga, Rafael Siano e Raquel Paulin (os filhos de Maurya)

Essa concepção cênica se alia à ambiguidade (ou até a certa instabilidade) harmônica presente na obra, e coloca em cena vidas que seguem ou terminam, literalmente, ao sabor da maré. O cenário econômico, de bom gosto e estático se adequa perfeitamente a uma obra que é praticamente estática – exceto pelo balanço do mar –, que é mais verbal que visual, que está mais preocupada em atingir uma sensibilidade profunda que em provocar estímulos.

A iluminação, repleta de significados, e a caracterização dos cantores a partir dos figurinos de Juliana Bertollini e do visagismo de Tiça Camargo criam um interessante contraste entre a pequenez da vida dos habitantes do vilarejo e as forças da natureza, com suas constantes e implacáveis mudandas de humor — algo que, hoje, estamos vivenciando em escala global.

A ópera, que leva menos de quarenta minutos, foi precedida pela Fantasia sobre um Tema de Thomas Tallis, também de Vaughan Williams. A peça serviu como uma espécie de prelúdio, durante o qual foi apresentado o que teria ocorrido antes do início da ópera, quando todos ainda estavam vivos. Foram cerca de quinze minutos de uma longa representação que acrescenta pouco: tudo o que precisamos saber nos será dito por Maurya. Talvez uma representação mais curta ou apenas o cenário, com a sua grande casa-onda e a discreta projeção do mar, tivesse sido um melhor instrumento para que pudéssemos imergir na bela música de Vaughan Williams.

Elisa Braga, Raquel Paulin e Lidia Schäffer

Dentre os cantores, destacou-se vocalmente, como Maurya, a mezzosoprano Lidia Schäffer. Se a sua dicção do inglês nem sempre era compreensível, isso foi compensado pelo seu timbre quente. Tiveram bom desempenho tanto o barítono Rafael Siano (Bartley), em seu pequeno papel, quanto as sopranos Raquel Paulin (Nora) e Elisa Braga (Cathleen). Além de bom desempenho cênico, Paulin exibiu um belo e redondo timbre nas regiões médias, embora, por vezes, a emissão tenha perdido um pouco da qualidade à medida que a cantora fazia a passagem para o agudo. Também foi bom o desempenho do coro feminino, que no final da obra lamenta, sem palavras, a morte do último filho de Maurya.

Vaughan Williams destacava que a dificuldade de Riders to the Sea não estava no canto, mas na orquestra. E foi do impecável desempenho da Orquestra do Theatro São Pedro que, para mim, vieram o grande prazer e o grande mérito da récita. Coeso, com sonoridade uniforme e solos muito bem tocados, o grupo, dirigido pelo maestro Cláudio Cruz, demonstrou que começou com vontade e qualidade um ano que, ao que tudo indica, não será fácil.

Tratando da modernidade da obra, Hugh Ottaway, em 1952, no The Musical Times, comparou os habitantes da vila ao compositor, e o mar às “forças esmagadoras do mundo moderno”. No domingo, ao sair da récita, ocorreu-me uma comparação parecida: como os habitantes da pequena vila perante o mar, o Theatro São Pedro vive sob as ameaças dessas “forças esmagadoras do mundo moderno” ao mesmo tempo que delas depende para sobreviver. Essas forças estão no governo, que a cada ano que passa destina menos verba para a cultura; na organização social, que gere o teatro, mas também tem outras prioridades; nos meios de comunicação (e aqui incluo redes sociais), indispensáveis para que o público tenha acesso ao que está sendo apresentado na casa, mas que ao mesmo tempo estão trabalhando para cultivar a cultura de massa, do entretenimento e da repetição, da preguiça mental e da falta de sensibilidade.

Depois de ter apresentado uma temporada primorosa em 2022, anunciada com a devida antecedência e que se encerrou com uma inesquecível Ariadne auf Naxos, em 2023 o São Pedro anunciou a sua temporada às vésperas da abertura e apresentou dois títulos relevantes e de qualidade: O Rapto do Serralho e, sobretudo, A Raposinha Astuta. Em 2024, o teatro não deixou de iniciar a sua temporada em março, o que é bom, e o fez com surpreendente qualidade. O problema é que essa “temporada 2024” sequer foi anunciada, sequer existe concretamente.

Enquanto a temporada não é oficialmente lançada, o melhor a fazer é ir ver Riders to the Sea, que fica em cartaz até o próximo domingo, 10 de março, e reconhecer a importância do trabalho desempenhado pelo Theatro São Pedro, que merece todo o nosso apoio. Mais informações e ingressos no site do teatro.


Fotos: Robs Borges / Theatro São Pedro.

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