O Banquete de Orliński

Jakub Józef Orliński e Il Pomo d’Oro trazem a sedução da música barroca à Sala São Paulo.

Do amante que adormece na montanha distante, do amor que não perdoa quem com ele brinca, do amor sem piedade, do amor que trai, do amor que faz chorar, do amor eterno, do amor autoritário… São as muitas faces do amor que povoam a ópera barroca da Veneza de Cavalli à Londres de Händel, e que o excelente contratenor polonês Jakub Józef Orliński apresentou ao público paulistano, de forma sedutora, ao lado do também excelente grupo Il Pomo d’Oro.

O memorável concerto, que ocorreu na Sala São Paulo no dia 1° de agosto, comemorou os 110 anos da Cultura Artística. Estava originalmente programado para agosto do ano passado, mas precisou ser cancelado por conta da pandemia. Agora, felizmente, Orliński e Il Pomo d’Oro chegaram ao Brasil.

É espantosa a rapidez com que a carreira de Orliński decolou. Em 2017 ele se graduou pela Julliard School e, no mesmo ano, fez a sua estreia profissional como Orimeno, no Festival d’Aix-en-Provence, na bela produção de Erismena, de Cavalli, com o maestro Leonardo Garcia Alarcón e a sua Capella Mediterranea (que também já estiveram por aqui pela Cultura Artística). Aos 32 anos, o cantor já se apresentou nos mais importantes teatros do mundo.

A parceria entre Orliński e Il Pomo d’Oro rende frutos desde 2018, e dela já resultaram três discos: Anima Sacra (2018), com árias barrocas de compositores da escola napolitana, Facce D’Amore (2019) e Anima Aeterna (2021), todos pela Erato, gravadora com a qual o artista tem um contrato de exclusividade. Em 2020, Orliński e Il Pomo d’Oro iniciaram uma turnê pelo mundo com o concerto que, finalmente, chegou à Sala São Paulo, baseada no programa de Facce D’Amore.

Como em O Banquete, de Platão, Orliński aceita o convite de Sócrates e se põe a definir o amor na ópera barroca, e o faz expondo as suas diferentes faces, suas diferentes fases, através do discurso de diversas composições dos séculos XVII e XVIII. Como não poderia deixar de ser, inicia a sua exposição com o amor de Endimione pela deusa Diana em La Calisto, de Francesco Cavalli, o ícone da ópera em Veneza. Se a ópera – esse nosso amor! – nasceu em Mântua com Monteverdi, foi em Veneza que ela cresceu e apareceu.

Endimione, no alto da montanha, sentindo-se próximo a Diana, está prestes a adormecer: seu amor é sereno, e Orliński o traduz com extrema poesia e delicadeza. A esse amor sereno, profundo, ele já emenda o extremo oposto: Eliogábalo, o imperador que não contava com boa reputação, uma espécie de antecessor operístico do Duque de Mântua, de Rigoletto. Com música mais ligeira, Eliogábalo alerta, na ópera homônima de Giovanni Antonio Boretti, que quem brinca com o amor, brinca com fogo. Orliński soube ressaltar, na medida certa, o contraste entre as duas situações.

Orliński tem uma voz precisa, bem controlada. Seus agudos são delicados. Sua passagem de registro do agudo para o grave é surpreendentemente homogênea. E seus graves têm um bom peso. Além disso, a sua dicção é clara, o texto é perfeitamente compreensível. Em resumo: ele é dono de uma técnica impecável. Não bastasse a qualidade vocal, tem uma presença cênica não só simpática, cativante, mas teatral, sem perder a naturalidade. Seu visual é de um modernismo cheio de classe e estilo.

Do começo ao fim, foi possível constatar o domínio técnico do contratenor, mas Infelice mia costanza, de Bononcini, foi um momento de especial refinamento, com um belo e controlado crescendo ao cantar “Infelice mia costanza,/ sventurata fedeltà”, em escala ascendente, e uma generosa messa di voce.

Também não poderia faltar o momento de virtuosismo, de improvisação barroca: veio em Che m’ami ti prega, da ópera Nerone, de Giuseppe Maria Orlandini. Com boas coloraturas, criatividade e bom humor, Orliński encarnou o imperador Nero, que ordena a Poppea que o ame e reine com ele, nos termos: “O imperador Nero te pede que me ame, te ordena que reine!”

Nem todas as faixas do CD fizeram parte do concerto. No disco, Che m’ami ti prega vem precedida de Otton, qual portentoso fulmine… Voi che udite, recitativo e ária da ópera Agrippina, de Händel, dando duas visões da mesma história a partir de dois compositores diferentes. De Händel, além da Agrippina, também foram suprimidas a grande cena de Orlando e Pena tiranna, cuja melodia é bastante familiar. O CD já é composto, em grande parte, por árias pouco conhecidas e nunca gravadas, e na seleção para o concerto, foram eliminadas as poucas que eram mais familiares. Claro que nós, amantes de Barroco, gostaríamos de ter ouvido a íntegra, uma hora e quinze minutos de música, mas já que uma seleção era necessária, ainda mais em um concerto que começou às nove horas da noite, foi uma escolha muito interessante. Mais que isso, foi uma escolha de quem confia na música que faz, que sabe que a sua arte desperta interesse pela qualidade e pelo refinamento, não pelo apelo à memória.

Nos extras, Orliński e Il Pomo d’Oro mantiveram o padrão e não apresentaram árias para o público cantarolar junto, mas duas peças que criaram um instigante contraste. Primeiro, o delicado legato de Alla gente a Dio diletta, de Francesco Nicola Fago, de seu álbum Anima Sacra, e depois, as coloraturas de Agitato da fiere tempeste, da ópera Riccardo I, ré d’Inglaterra, de Händel.

Il Pomo d’Oro, um dos mais importantes grupos do gênero, é velho conhecido do público paulistano: tem sido assíduo frequentador do palco da Sala São Paulo, graças à Cultura Artística. O grupo veio liderado por outro jovem prodígio: Maxim Emelyanychev, seu regente e cravista. Com apenas 34 anos, Emelyanychev faz parte do grupo desde 2011 e, aos 28 anos, em 2016, tornou-se seu maestro. No Ballo dei Bagatellieri, de Nicola Matteis, Emelyanychev regeu, tocou cravo e fez o belo solo inicial de flauta doce. Foi um momento em que Il Pomo d’Oro pôde demonstrar a sua musicalidade no campo puramente instrumental. É sempre bom ouvir o ritmo, a precisão do grupo. Que Il Pomo d’Oro volte sempre!

Orliński e Il Pomo d’Oro mostraram, a um público jovem e totalmente envolvido, que a música barroca feita com competência é uma música viva e atraente, que flui com liberdade. Sempre fiéis ao estilo, mostraram o que é dinâmica, o que é ritmo, o que é interpretação. Através desse discurso de amor, mostraram a leveza e o encanto do Barroco.

Com programa impresso e eletrônico contendo o texto original e a tradução das peças interpretadas, introdução escrita por professores da USP e da Unicamp, e ainda com vídeo introdutório no YouTube, a Cultura Artística demonstrou sincera e legítima preocupação com a difusão cultural, com oferecer meios para que o público aproveitasse ao máximo a oportunidade que estava tendo. Cabe um alerta, contudo: as traduções, provavelmente feitas por tradutores automáticos (que têm muita dificuldade com linguagem poética), são muitas vezes distantes demais do texto original. O ideal é que sempre haja uma revisão por parte de alguém que entenda italiano. Não sendo possível, teria sido preferível apresentar apenas o texto original, ou colocar a tradução em inglês, presente no CD, a iludir aqueles que não conhecem o idioma de Dante.

Foto: Ale Dupont.

2 comentários

  1. Querida amiga Fabiana!
    É sempre um grande prazer e enriquecimento cultural ler seus comentários e críticas ao que acontece em nosso mundo musical, operístico.
    Abraço carinhoso,
    Liz

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