Uma Declaração de Amor à Ópera

Com “A Raposinha Astuta”, o Theatro São Pedro retoma, em grande nível, o projeto Janáček.

Příhody Lišky Bystroušky (A Raposinha Astuta), 1924
Ópera em três atos
Música e libreto: Leoš Janáček (1854-1928)
Theatro São Pedro, 02 de agosto de 2023
Direção musical: Ira Levin
Direção cênica: André Heller-Lopes
Cenografia: Renato Theobaldo
Figurino: André Heller-Lopes e Melissa Màia
Iluminação: Fábio Retti
Visagismo: Anderson Bueno
Coreografia: Franklin Dávalos
Raposinha: Carla Caramujo, soprano
Guarda Florestal: Vinicius Atique, barítono 
Raposo: Denise de Freitas, mezzosoprano
Professor/Mosquito: Giovanni Tristacci, tenor
Harasta, o caçador de aves: Gustavo Lassen, baixo
Padre/Texugo: Saulo Javan, baixo
Galo/Andorinha: Thayana Roverso, soprano
Galinha Chocholka/Sapo: Janaína Lemos
Sapo jovem: Elisa Braga, soprano
Esposa do caçador Guarda florestal/Coruja: Nathália Serrano, contralto
Grilo: Amanda Camelo, soprano
Gafanhoto: Tatiane Reis, soprano
Cão Lapák e Sra. Páskova, esposa de Pásek: Larissa Guimarães, mezzosoprano
Pica-pau: Luiza Girnos, mezzosoprano
Pepík, o neto do guarda florestal: Isabella Luchi, soprano
Frantík: Barbara Blasques, soprano
Pásek: Cleyton Pulz, tenor
Orquestra do Theatro São Pedro

El tiempo es la sustancia de que estoy hecho. El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río; es un tigre que me destroza, pero yo soy el tigre; es un fuego que me consume, pero yo soy el fuego. El mundo, desgraciadamente, es real; yo, desgraciadamente, soy [Borges].

É assim que o poeta argentino Jorge Luis Borges encerra o seu ensaio Nueva refutación del tiempo; com o mesmo trecho, inicia-se a sensível e inspirada produção de Příhody Lišky Bystroušky (em português As Aventuras da Raposa Bystroušky, ou, como é normalmente traduzida, A Raposinha Astuta), de Leoš Janáček, concebida por André Heller-Lopes, em cartaz no Theatro São Pedro. Enquanto o poema é lido, vemos o galo, como um mestre de cerimônias, à frente das cortinas, girando um guarda-chuva no sentido que, para o público, é anti-horário, anti-tempo. Encerrada a leitura, o galo dá as três pancadas no chão com o guarda-chuva: o destino – segundo Borges, “espantoso porque é irreversível” – está traçado; o tempo vai correr; o espetáculo vai começar!

O tempo, com toda a nostalgia que ele traz, e o ciclo da vida, os eternos morrer e renascer, constituem o principal tema da obra. O curioso é que a trajetória que conduziu a raposa Bystrouška à sua versão operística foi, também ela, uma sucessão de renascimentos. Bystrouška, Orelha Fina – que em francês ganhou o simpático nome de Finoreille –, nasceu como Bystronožka, Pé Rápido, em uma série de desenhos que o pintor Stanislav Lolek havia largado na gaveta e que chamaram a atenção do editor do jornal Lidové Noviny, o Jornal do Povo, de Brno. Para publicar os desenhos, era necessário que fossem acompanhados por textos, e a tarefa de criar esse folhetim coube ao escritor Rudolf Těsnohlídek, cronista do jornal. Foi nesse processo que, por um erro de digitação, a raposa perdeu os pés rápidos e renasceu, contrariando os desenhos, com orelhas finas, mas não foi essa a única transformação na personalidade da nossa raposinha: ela ganhou certa ironia, tornou-se politizada. Fatos da atualidade, que os leitores da época conseguiam identificar facilmente, passaram a fazer parte do seu cotidiano. Ela entretinha os leitores, ficou famosa.

Leoš Janáček buscava um tema para a sua próxima ópera, estava lendo Einstein, aprendendo sobre o tempo e sua relação com o espaço, quando teve contato com um dos episódios da Raposinha. Ficou seduzido na hora. E a Raposinha renasceu novamente: com poucas alterações no texto, Janáček selecionou alguns episódios, reordenou-os, criou lapsos temporais, eliminou as referências às notícias cotidianas – tornando a trama atemporal – e matou Bystrouška no meio do terceiro ato: em seu lugar, ficou a sua filha, uma nova raposinha, parecida com a mãe – transformando a trama em uma reflexão sobre a vida e a morte, e também sobre o eterno renascer na vida e na natureza, como escreveu em carta a Kamila Stösslová, sua musa e amor platônico.

“É uma coisa alegre com um final triste, e eu me coloco nesse final triste, e pertenço a ele”, escreveu o compositor septuagenário, identificando-se com o Guarda Florestal, que, ao lado da raposinha, ocupa um papel de protagonista na obra. Ainda em carta a Kamila, Janáček aponta que a ópera coloca humanos e animais no mesmo nível, ambos falam tcheco e o dialeto de Brno. “O que liga o mundo animal ao mundo humano é o mesmo tema: o tempo que passa, a velhice para a qual todos os caminhos conduzem”, escreveu Milan Kundera em texto reproduzido no número 252 da revista Avant Scène Opéra.

Assim sendo, essa convivência entre humanos e animais não transforma a ópera em uma alegoria ou fábula, não há um preceito moral. Segundo John Tyrrell, autor de Czech Opera, trata-se de uma tragicomédia no sentido shakespeareano do termo, que tem entre as suas características: a justaposição de universos contrastantes e paradoxalmente similares; a mistura de comédia com comoção e tragédia; o reconhecimento de forças sobrenaturais; um ritmo cíclico da vida.

A Raposinha, o Sapo, o Guarda Florestal e seu cão no universo surrealista de Magritte

Ao transportar a obra ao universo do pintor surrealista belga René Magritte, André Heller-Lopes, que contou com os lindos cenários de Renato Theobaldo – um verdadeiro artista plástico – lidou com maestria com os paradoxos, contrastes e com as similaridades, com momentos de comoção e de comédia, com morte e vida; com essa trama tão fantástica, em que humanos e animais falam uma mesma língua, que é, ao mesmo tempo, tão real, tão palpável, tão cotidiana: é a história da vida de nossos pais, da nossa vida, e será também a da vida de nossos filhos. Como na obra de Janáček, em Magritte as figuras são perturbadoramente reais, mas nem tudo é como parece, o senso comum é desafiado, o real convive, pacificamente, com o fisicamente impossível, com a fantasia. Em Magritte, os paradoxos se tornam naturais, e as imagens, estáticas, permitem que o tempo flua livremente, que cada um – humanos, animais e natureza – tenha o seu tempo.

Além dos elementos das obras de Magritte, Heller-Lopes buscou, em sua concepção cênica, conectar A Raposinha Astuta às outras óperas de Janáček que já produziu no São Pedro: Kátia Kabanová e O Caso Makropulos. Segundo Heller-Lopes, em vídeo no canal de YouTube do teatro, “todas têm as mesmas árvores, têm as escadas, têm as plataformas…”. Essas três óperas são inspiradas pelo amor que Janáček nutria por Kamila Stössová, e por isso Heller-Lopes as considera uma grande declaração de amor: “Para mim, elas são, também, uma grande declaração de amor à ópera”, afirmou o diretor.

Embora haja alterações no cenário ao longo da ópera, alguns elementos permanecem o tempo todo, ou, ao menos, durante os dois primeiros atos: as escadas, as árvores, alguns relevos que indicam a floresta, as plataformas, o céu azul à la Magritte. As escadas parecem escadas rolantes, mas não são o que parecem, são estáticas; o céu, que também se altera, se transforma, nos dois primeiros atos encobre a parte superior das escadas. Da mesma forma que há uma escada que conduz ao céu, também há outra que parece conduzir às profundezas da Terra, ou dela brotar.   

Ao assistir à bela produção de Heller-Lopes, com todos aqueles guarda-chuvas magritteanos povoando o palco, é impossível não lembrar do filme Les Parapluis de Cherbourg (1964), de Jacques Demy. Talvez tenha sido intencional, talvez tenha sido mero acaso, mas foi um sentimento geral e interessante, uma vez que o filme, hoje um clássico, além de ter um clima nostálgico, carrega um elemento estranho, surreal, ao sobrepor o realismo da linguagem cinematográfica ao estranhamento causado pelo fato de todos os diálogos serem cantados – ao contrário dos musicais americanos, onde os diálogos são falados. E o filme começa com o recitativo mais banal possível, em uma oficina mecânica, com o cliente perguntando se o carro já estava pronto. Além disso, o filme trata do amor frustrado (como o do Professor, na ópera), do tempo que separa, da guerra, do curso da vida – “é estranho como o sol e a morte viajam juntos”, diz Guy – e, como a ópera, termina no inverno, com a neve caindo, e com a presença de uma nova geração que vem dar continuidade à vida: Geneviève diz a Guy que Françoise, a pequena filha deles, se parece muito com o pai.

Kundera chamou A Raposinha Astuta de “a mais nostálgica das óperas”, como resultado da junção de “uma humanidade cotidiana; um caleidoscópio de emoções fugazes, mas sinceras; uma mistura de sensações oníricas e rústicas; uma recusa ao efeito”. Para ele, Janáček consegue colocar a música “radicalmente em primeiro plano” e fala sobre a velhice como um músico: “a ‘essência musical’ da velhice (musical no sentido: acessível à música, que só a música pode exprimir) é a infinita nostalgia de um tempo que não existe mais”.

A nostalgia, escreve Kundera, “determina não apenas o clima da obra, mas mesmo sua arquitetura, fundada sobre o paralelismo de dois tempos constantemente confrontados: o dos humanos, que envelhecem lentamente, e o dos animais, cuja vida avança a passos largos; no espelho do tempo acelerado da raposa, o velho guarda florestal percebe a melancólica fugacidade de sua própria vida”. Peço licença a Kundera para identificar um terceiro tempo: o da Terra, da natureza, das estações do ano – presente no libreto e que ficou muito claro na produção de Heller-Lopes.

No cenário, predomina a floresta, mas também há a casa do Guarda Florestal e a taberna. No primeiro quadro do primeiro ato, que começa com um tema letárgico, nostálgico, que se repete, estamos na floresta, em um vale escuro e seco, em uma tarde de verão. O ambiente é preguiçoso, sombrio. A esse tema, logo se sobrepõe outro tema mais ágil, mais leve, que lembra insetos voando. Na produção de Heller-Lopes, conforme os temas vão ganhando vida, os animais da floresta começam a desfilar, surgem os homens de sobretudo e chapéu (de Magritte), todos se deslocam com movimentos contínuos, abrem seus guarda-chuvas, começam quase que a bailar; a precisa direção de atores e a coreografia se misturam e se completam.

No segundo quadro, já no outono, após a captura da Raposinha, estamos na casa do Guarda Florestal. A mudança de cena é simples e eficiente: uma cadeira no canto e um varal com roupas brancas, estirado ao longo da cena, transformam o que até então era a floresta em um quintal. A iluminação de Fábio Retti, que em momento algum ao longo da ópera se deixa rebaixar a um papel de coadjuvante, torna-se mais brilhante; os ótimos figurinos de Heller-Lopes e Melissa Màia, que jamais nos deixam esquecer dos homens de preto de Magritte, ganham adereços com cores mais fortes. Amanhece. Com inteligência, bom humor e uma pitada de dramaticidade, é transportada ao palco a verdadeira revolução socialista que a Raposinha promove com as galinhas do Guarda Florestal. Por alguns momentos, uma luz incidente a partir do fundo do palco cria um ambiente que remete ao quadro O Império da Luz, de Magritte.

A casa do Guarda Florestal

No segundo ato, depois de a Raposinha, agora livre, adulta e de volta à floresta, ter dado continuidade à sua revolução e ter tomado a propriedade do Texugo, temos a cena da taberna, onde o Guarda Florestal, o Professor e o Padre travam a sua conversa ébria em torno de um balcão verdadeiramente surreal. De volta à floresta, em uma noite de lua cheia, o Professor, bêbado, sente o seu centro de gravidade alterado: no cenário, três belas luas, realistas, cheias, comprovam a sua sensação. Apesar do ambiente noturno, os girassóis nos guarda-chuvas simbolizam o amor e a chegada do verão. É em meio às vozes da floresta, com os cantores de sobretudos e chapéus pretos, como em Magritte, portando guarda-chuvas com girassóis, que a Raposinha conhece o seu Raposo e por ele se apaixona. A Raposinha tira o seu casaco magritteano, e o que vemos é um vestido alaranjado: como o que Geneviève usou, em Les Parapluis de Cherbourg, quando saiu com Guy pela primeira vez; como em Os Amantes, de Magritte.

O terceiro ato se passa algum tempo depois, entre outono e inverno. O intervalo, que poderia parecer desnecessário em função da curta duração da obra, ajudou a criar essa quebra temporal: retomado o espetáculo, encontramos os personagens mais velhos, e o cenário, mudado. As árvores sumiram, as estruturas do céu que cobriam a parte superior da escada também desapareceram: o céu está aberto, despojado, pronto para receber a Raposinha e o Guarda Florestal. As estruturas em relevo da floresta agora estão cobertas por neve. Heller-Lopes acentuou o caráter gélido, azulado, desse final: o destino irreversível de Borges, a nostalgia de Kundera, o final triste de Janáček. Esse ambiente é quebrado apenas pelos coloridos e iluminados guarda-chuvas, que aparecem durante o solilóquio do Guarda Florestal. No final, em uma cena linda, sensível, comovente, o Guarda Florestal sobe a escada e é recebido, perto do céu, pela Raposinha.

A Raposinha e o Guarda Florestal, os dois protagonistas, são os personagens que mais sofrem os efeitos do tempo ao longo da obra: ela se torna adulta, se casa; ele envelhece – como Kamila e Janáček. Sorte nossa: a soprano portuguesa Carla Caramujo e o barítono brasileiro Vinicius Atique foram além das ótimas atuações vocal e cênica, e souberam transmitir a evolução dos seus personagens.

Carla Caramujo (Raposinha) e Vinicius Atique (Guarda Florestal)

Carla Caramujo não tem uma voz grande, mas sabe projetá-la bem: não houve um só instante em que não tenha sido bem ouvida. Seu timbre brilhante, um pouco metálico, adequou-se perfeitamente ao da Raposinha. No primeiro ato, quando a Raposinha, ainda criança, indefesa, tentava fugir do Guarda Florestal, seu “Mami, mami!” soou quase infantil, despertando a compaixão de algumas crianças que estavam na plateia. Na flor da idade, tornou-se revolucionária; no segundo ato, ao voltar para a floresta, ganha um tema, e o canto de Caramujo ganha corpo. Ao lado do Raposo, seu canto foi lírico, com uma dinâmica rica, com momentos de piano bem sustentados. Cenicamente, sua Raposinha foi desenvolta, astuta.

Vinicius Atique passa por uma ótima fase: sua presença de palco sempre chamou a atenção, e, nos últimos anos, sua voz tem evoluído sensivelmente. No São Pedro, foi um excelente Guarda Florestal. Aliado à direção de Heller-Lopes, apresentou um personagem extremamente bem construído, tanto cênica quanto vocalmente. No primeiro ato, com voz viril, canto preciso, olhar maroto, jovial, o Guarda Florestal de Atique, acompanhado por seu fiel cão de caça e com a sua espingarda junto ao coração, adormeceu, lembrando do cansaço que sentira na manhã seguinte à sua noite de núpcias. Podia dormir tranquilo, mentiria à mulher e, como uma boa mulher, ela acreditaria. Sua espingarda, símbolo da sua virilidade, estava mais perto do coração que sua esposa.

No terceiro ato, envelhecido, abatido, quando já não era apenas o Guarda Florestal, mas também o próprio Janáček, que se colocou nesse final triste, que pertence a esse final, a postura corporal de Atique muda completamente. É algo que vai além do ótimo visagismo de Anderson Bueno. Na taberna, o clima era de solidão: o taberneiro Pásek não estava; o Padre havia ido embora para Strán – e quando canta que o latim do Padre está fazendo falta, o olhar de Atique parece distante; o Professor estava melancólico; o cão Lapák, velho, não conseguia mais acompanhar o seu dono; a Raposinha – ele não sabia – já havia virado a nova estola de Ternyka. “Quanto tempo faz que corríamos como tolos? Agora a gente fica feliz se encosta em algum lugar, e não quer nem se mexer!”, canta o Guarda Florestal – e Atique o faz com a voz mais áspera, cheia de nostalgia.

A Atique coube o solilóquio final, o momento mais pessoal de Janáček. “É conto de fadas ou verdade?” Sua memória do dia seguinte ao casamento volta, mas de modo bem diferente do que apareceu no início, os temas musicais não são mais tão estáticos, os graves predominam, ele não se lembra mais do cansaço, não pensa mais em mentir para a mulher: nessa memória alterada, talvez bordada pelo tempo, talvez um conto de fadas, ele se lembra do amor, dos cogumelos em que pisaram porque, com o amor, nem os conseguiam ver. “Mas que beijos, que beijos colhemos!” Durante esse ato, a espingarda perde a conotação de virilidade, Atique passa a usá-la como apoio a seu corpo instável. O canto ganha certa urgência: “Como a floresta é maravilhosa! Quando as ninfas do rio voltarem para casa (…), vão correr em seus trajes leves, até que maio e o amor regressem”. É o eterno renascer do amor, a cada primavera, a cada geração – é conto de fadas ou verdade? A cor da voz de Atique se altera quando ele se dirige ao sapo, um personagem completamente magritteano, muito bem interpretado por Elisa Braga. É ele, esse personagem menos que secundário ao longo da ópera, mas, no fim, fundamental, indispensável, o portador da boa-nova do eterno renascer, que quebra esse momento de delírio, de contemplação, e que, com um golpe, tanto verbal quanto musicalmente, nos traz de novo à realidade, ao banal, ao proferir as palavras finais da ópera: “Não sou o mesmo, aquele era meu avô! Ele me falou de você!”

O sempre bom tenor Giovanni Tristacci emprestou sua voz incisiva ao Mosquito e ao Professor. Emocionalmente frágil, ao fazer uma declaração de amor a um girassol julgando estar diante de Ternyka, por quem nutria um amor aparentemente platônico, ele protagoniza um dos momentos mais patéticos da ópera. No São Pedro, tudo foi tratado com muita delicadeza, no espírito da música de Janáček: o canto de Tristacci não foi, em momento algum, caricato; o girassol foi substituído pela Raposinha segurando um guarda-chuva com girassóis pintados – justo ela, que não tardaria a ser morta por Harašta, o caçador de aves, para dar uma estola à própria Ternyka, com quem o caçador, e não o Professor, ia se casar. “Aí está a sabedoria do velho Janáček”, escreveu Kundera: “ele sabe que o ridículo dos nossos sentimentos não diminui sua autenticidade. Quanto mais a paixão do Professor é profunda e sincera, mais ela é cômica e mais ela é triste”. A produção de Heller-Lopes respeitou e salientou essa sabedoria.

Harašta, um personagem que tem uma presença pequena, mas fundamental, uma vez que é ele quem mata a Raposinha, coube ao baixo Gustavo Lassen, com bom desempenho cênico e vocal. Seu vibrato acentuou a violência, a leviandade do ato cometido por Harašta. Saulo Javan, outro baixo, emprestou o seu belo timbre amplo e aveludado e a sua desenvoltura cênica ao Texugo e ao Padre, os dois personagens que Janáček relacionou explicitamente – ambos são expulsos de suas casas, ambos precisam partir.

Carla Caramujo e Denise de Freitas: Raposa e Raposo

Com a sua voz quente, enorme, a mezzosoprano Denise de Freitas nos brindou com um Raposo masculino, sedutor, seguro de si. Foi interessante notar como as vozes de Freitas e Caramujo se combinaram: com contraste, mas sem deixar de timbrar.

Na produção do São Pedro, recebeu destaque o Galo de Thayana Roverso: ele teve a função de mestre de cerimônias e esteve presente em várias cenas. Tanto no pouco canto que teve, quanto cenicamente, Roverso saiu-se muito bem. O mesmo vale para os numerosos comprimários, humanos e animais dessa populosa floresta de Janáček: a Galinha Chocholka de Janaína Lemos, a coruja e a esposa do Guarda Florestal de Nathália Serrano, o Cão Lapák e a Sra. Pásková de Larissa Guimarães, o grilo de Amanda Camelo, o gafanhoto de Tati Reis, o pica-pau de Luiza Girnos, o Pepík (neto do Guarda Florestal) de Isabella Luchi, o Frantík de Barbara Blasques, o Pásek de Cleyton Pulzi.

Os três bailarinos, Amanda Correa, Cezar Rocafi e Gabriel Dussatti, que, com coreografia de Franklin Dávalos, às vezes como três libélulas, chegando a simular o quadro Os Amantes, de Magritte, tiveram um belo desempenho, sobretudo entre os dois quadros do primeiro ato. Foi, também, digno de elogio o pequeno coro, com dois sopranos, dois contraltos, três tenores e quatro baixos, que se dividiu entre as galinhas e bestas da floresta (ambos sopranos e contraltos) e as vozes da floresta. Foi um coro que, além de cantar, teve uma intensa atuação cênica.

A música de Janáček é construída de modo que predominam temas curtos, e não longas melodias. Os momentos de lirismo são raros, sentimos o tempo passar, jamais somos envolvidos por uma melodia infinita, que nos arrebata, dando aquela impressão de suspender o tempo. E nem por isso a música deixa de ser bela – ao contrário, sua sutileza, seu lirismo e sua sensibilidade são singulares: é sutil como uma gota d’água caindo na floresta, após a chuva, ou como o bater das asas de um inseto; é lírica, como a fugacidade da paixão dos animais; é sensível, nostálgica, como as memórias de um tempo que há muito já passou. Os temas não são associados a personagens, embora a Raposinha, no segundo ato, ganhe um: em geral, eles têm a função de criar um ambiente, transmitir sensações, por vezes sons mesmo – sons dos insetos voando, por exemplo. É uma música complexa, rica em timbres, em cores, em dinâmicas. Por isso, era necessário, à frente da Orquestra do Theatro São Pedro, um maestro do calibre de Ira Levin. Especialista em ópera, Levin soube conduzir a orquestra a seu protagonismo, respeitando os cantores, sem jamais encobri-los; soube colorir a floresta de Janáček, transmitir o clima de cada situação, de cada estação do ano. Se no começo da récita houve alguns problemas de afinação, ao longo da noite a orquestra foi se tornando coesa e respondeu muito bem às exigências da partitura.

O Theatro São Pedro voltou a disponibilizar programas impressos. Isso é bom: o público, que na maioria das vezes não coleciona os arquivos em pdf, tem a opção de voltar para casa com um programa impresso. Deixo aqui duas sugestões. Se o libreto é traduzido e impresso, que tal incluir, também, as rubricas (as importantes indicações que constam nele), e não apenas o texto que será cantado e projetado nas legendas? Não creio que isso aumente tanto o trabalho ou o número de páginas, mas aumenta enormemente a qualidade do material. A segunda sugestão – estou querendo demais… – é que o programa passe por uma revisão profissional, uma vez que, na tradução do libreto, além de erros de digitação, há erros de português.

Na sala, o ar-condicionado estava gelado, e o vento, forte. Confesso: não sou fã de ar-condicionado forte e, por isso, nem escreveria nada aqui se essa não tivesse sido uma reclamação geral. Várias pessoas tossindo, espirrando, mudando de lugar para fugir do frio. No intervalo e na saída, pessoas reclamando. Não consigo entender: além de causar incômodo ao público, um ar-condicionado assim tão forte acarreta um aumento no consumo de energia elétrica e um maior gasto da preciosa e curta verba do teatro.

Por fim, não posso deixar de saudar a continuidade do projeto Janáček, de Heller-Lopes e Ira Levin, no Theatro São Pedro, que já havia nos rendido as excelentes produções de Kátia Kabanová, em 2018, e de O Caso Makropulos, em 2019, e agora nos trouxe essa também excelente Raposinha Astuta. Já estou esperando a próxima!

Minhas recentes experiências operísticas estão me ensinando a valorizar cada vez mais as direções musical e cênica. Ter à frente de uma produção pessoas que saibam o que estão fazendo não é apenas importante, é fundamental, determinante. Felizmente, foi isso que ocorreu no São Pedro: Ira Levin e André Heller-Lopes construíram um espetáculo fluente e coeso, com elenco homogêneo e numeroso, onde música, canto e teatro realmente se aliaram. Essa é a definição de ópera, não? A sensação com que saí do teatro, no dia 02 de agosto, foi a de realmente ter testemunhado uma declaração de amor à ópera. Se, conforme falou no vídeo, é assim que Heller-Lopes vê essa obra de Janáček, foi isso o que ele e Ira Levin levaram ao palco. Meu palpite é que já temos forte candidata à ópera do ano.

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Fotos: Heloísa Bortz.

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