Karita Mattila em Tosca (© Metropolitan Opera, 2009, Ken Howard)

Vida de cantora

Oscilações hormonais, menopausa, gravidez, filhos, pais… Os desafios enfrentados pelas cantoras no mundo da ópera.

Recentemente, Notas Musicais noticiou que a célebre soprano Anja Harteros havia cancelado, pelo terceiro ano consecutivo, todos os seus compromissos. Embora oficialmente ela não tenha apresentado nenhuma justificativa, o que se diz é que está afastada para cuidar de pessoas da família. Sabemos, também, que a cantora está em uma idade em que mudanças vocais causadas por alterações hormonais podem representar um desafio. A lista dos novos papéis nos quais ela iria estrear indica uma mudança de repertório.

Harteros não foi a única a cancelar tudo nos últimos anos. No fim do ano passado, a notícia em torno das dificuldades da mezzosoprano Anita Rachvelishvili para retornar aos palcos também chamou a atenção do mundo da ópera.

Conforme apontado na notícia sobre Harteros, uma série de cancelamentos desse tipo sempre serve para nos lembrar dos constantes desafios enfrentados por cantoras, sejam esses desafios hormonais, familiares, ou, como é mais comum, uma combinação de vários fatores.

Menopausa

Em entrevista à France Musique, a soprano Karita Mattila contou que estava cantando Leonore, em Fidelio quando sentiu que a sua voz estava diferente. Pessoas próximas, acostumadas a ouvi-la, não notaram nada, mas ela sentia a mudança. Eram os primeiros sinais da menopausa – algo que ocorre bem antes da cessação da menstruação. Seguindo a recomendação de colegas, buscou um “guru”, um célebre professor de canto especialista em menopausa. Com os conselhos do tal “guru”, conseguiu readaptar o uso da voz e reequilibrar a respiração. Conhecendo melhor o seu instrumento, Mattila atravessou a menopausa, aprendeu a manejar a sua “nova voz” e teve sucesso em seu novo repertório – migrou de Elsa para Ortrud, de Jenůfa para Kostelnička, de Chrysotemis a Klytämnestra, de Salome a Herodias.

Lamentavelmente, na década de 1970, a imensa mezzosoprano Christa Ludwig não teve a mesma sorte. Se atualmente a menopausa continua a assombrar as cantoras, antigamente as coisas eram ainda piores.

Christa Ludwig como Eboli (Salzburg, 1975)

Em 11 de agosto de 1975, no Festival de Salzburg, Christa Ludwig tinha 47 anos e estava cantando Eboli em Don Carlo, com Herbert von Karajan regendo a Filarmônica de Viena e Mirella Freni estreando, com toda a glória, como Elisabetta. A récita estava sendo transmitida ao vivo pelo rádio. Eboli era um papel que acompanhava a grande Christa havia um par de décadas, e que ela já tinha cantado umas cinquenta vezes. Naquela noite, porém, O don fatale foi realmente fatal: sua voz parecia tensa, e os agudos, mais difíceis de serem atingidos – ela estava lutando com a própria voz. Após a apresentação, Ludwig deixou a cidade e abandonou as récitas seguintes, sem sequer falar com Karajan. Segundo Tamara Bernstein, em artigo publicado no The National Post em maio de 1999, um jornal (infame) anunciou: “Uma estrela caiu do céu”.

A gravação está aí para mostrar que a voz de Ludwig não falhou em uma nota aguda, como Tamara Bernstein escreveu em seu artigo. Ludwig fez todas as notas, o público aplaudiu longamente, e o resultado teria sido considerado bom por outras cantoras, mas não estava no padrão de qualidade de Christa Ludwig. Basta comparar com uma gravação anterior para, apesar da qualidade do som, notar a diferença.

Hoje sabemos que o jornal errou: a estrela continuou brilhando por muitos anos. A menopausa e esse fatídico Don Carlo não foram o fim da carreira de Ludwig, mas, como ela mesmo definiu, aqueles foram “anos infernais”. A artista contou que as suas cordas vocais estavam tão frágeis que, às vezes, tinha a impressão de que eram de vidro. “As cordas vocais são muito parecidas com a vagina. É o mesmo tipo de tecido, então, quando uma está seca, a outra também está”, disse Ludwig em uma das suas declarações mais famosas sobre o tema. Após várias tentativas, ela conseguiu resolver o seu problema fazendo reposição hormonal.

Na sua edição de março de 2018, a revista inglesa Opera publicou a excelente matéria Flushed with Success, assinada por Henrietta Bredin, que trata justamente dos efeitos da menopausa em cantoras. Na matéria, o professor de canto David Jones, que se especializou em cantoras com mais de 45 anos, lista seis sintomas vocais frequentes no período da menopausa: a voz perde a flexibilidade; as notas agudas sofrem, porque a passagem se torna mais difícil; a diferença entre a voz de cabeça baixa e a de peito torna-se maior; a voz de cabeça grave perde cor e volume; a voz de peito fica escura demais; o timbre torna-se mais duro e espesso, e a voz começa a oscilar (ou “balançar”).

Segundo Jones, “é possível, com os exercícios corretos, manter a voz flexível e maleável. É realmente essencial vocalizar todos os dias, e não forçar a voz com muita pressão de ar, o que é comum, pois é uma resposta involuntária à sensação de perda de controle. Se os cantores pararem de cantar, os músculos se atrofiam por falta de exercícios adequados”.

“O efeito psicológico também não pode ser subestimado – a identidade de um cantor está intrinsecamente ligada ao ato de cantar”, aponta Jones. “Quando a voz não está mais saudável ou funcionando adequadamente, tanto a autoestima vocal quanto a mental sofrem. Já perdi a conta do número de pessoas que caíram em lágrimas ao descobrir, durante uma sessão, que podiam recuperar o que pensavam estar perdido”.

Evidentemente, esse efeito psicológico não se resume a uma questão de identidade. As oscilações hormonais também trazem oscilações de humor, e, pior ainda, há a insegurança em relação ao futuro artístico e profissional. A isso se soma uma tendência atual de agentes, diretores e produtores, de deixar as cantoras de lado tão logo percebam sinais de menopausa ou de envelhecimento.

Gravidez

Bredin citou a mezzosoprano e professora de pedagogia vocal irlandesa Imelda Drumm, cuja interessante tese de doutorado foi justamente a respeito da influência exercida por hormônios de reprodução em cantoras profissionais. Drumm coletou questionários de 42 cantoras de diferentes idades e nacionalidades, contendo informações sobre a situação hormonal e os problemas enfrentados por essas cantoras.

Além da menopausa, outra brusca mudança hormonal e fisiológica abordada por Drumm é a gestação. Embora a maioria das cantoras atravesse esse período sem grandes problemas, sempre causa alguma inquietação. Segundo a pesquisadora, muitas cantoras relatam que a atuação durante a gravidez pode trazer diversos problemas, como dificuldade para respirar, refluxo, náusea e pressão sobre a bexiga. Apesar disso, e embora a autora tenha notado um alto índice de depressão pós-parto entre cantoras, a maioria delas sente uma melhora vocal após o fim da gestação: ficam mais conscientes dos músculos envolvidos no controle da respiração, e suas vozes, mais cheias, mais ricas, mais quentes e mais pesadas.

Infelizmente, nem sempre é assim. Causou grande impacto o artigo Can One of Opera’s Greatest Singers Get Her Voice Back?, de Zackary Woolfe, publicado na edição de 20 de dezembro do The New York Times. O autor narra o drama da mezzosoprano Anita Rachvelishvili, de 39 anos, que há dois anos luta para tentar recuperar a sua voz após a gravidez. Como ocorreu com Christa Ludwig em 1975, Rachvelishvili também fugiu após uma apresentação desastrosa – e sem sequer aparecer para receber os aplausos. Foi no início de 2022, no La Scala, após a noite de estreia como Princesa de Bouillon em Adriana Lecouvreur. Ela contou a Woolfe que as notas agudas simplesmente não saíram: “Eu disse ao meu terapeuta que eu teria me matado se não fosse pelo bebê”, revelou.

Anita Rachvelishvili como Princesa de Bouillon (Milão, 2022) – ©Brescia-Amisano / Teatro alla Scala

Em 2021, durante a gravidez, Rachvelishvili cantou poucas vezes e sentiu diferenças na voz, mas achava que tudo se resolveria após o parto. Não foi o que aconteceu. Sua primeira atividade, logo após ter concebido, foi Khovanshchina, em Paris – e a mezzo afirmou que não ter dado o devido tempo após o parto foi a pior decisão de sua vida. Ela sentiu um corpo completamente diferente daquele ao qual estava acostumada, com uma voz também completamente diferente. Além das mudanças hormonais, Rachvelishvili explicou que o seu apoio era na região pélvica, mas esse apoio foi afetado pela gravidez e pelo parto. Ela estava exatamente tentando reajustar o apoio enquanto ensaiava a fatídica Adriana Lecouvreur.

Ao contrário de Karita Mattila, Anita Rachvelishvili não parece estar em busca de especialistas que possam ajudá-la. No início da crise, entrou em atrito com o antigo professor e adotou o marido como coach. A julgar pela matéria de Woolfe, em vez de buscar aprender a manejar o seu novo corpo e a sua nova voz, ela tenta trazer de volta a antiga Anita: “Só preciso travar essa batalha comigo mesma, por mim mesma. Ninguém mais pode me ajudar. Preciso me lembrar de como eu era e de como Anita fazia”, declarou.

Oscilações hormonais

Além das mudanças hormonais mais bruscas, as cantoras são suscetíveis às oscilações hormonais mensais causadas pelo ciclo menstrual. “Cantores são como atletas”, observou, na Opera, o ginecologista Michael Savvas, especialista nos efeitos vocais causados por hormônios. Segundo ele, os cantores “são supersensíveis a qualquer mudança em seus corpos. A menopausa pode trazer mudanças vocais, e mulheres mais jovens também podem ter as suas vozes significativamente afetadas pela menstruação”.

A maioria das cantoras da pesquisa de Drumm nota mudanças vocais relacionadas ao ciclo menstrual. Elas “relatam que se sentem mal, com dor e cólicas abdominais, que se sentem lentas, que têm aumento de tensão, ressecamento (…), cordas espessas e peso vocal, diminuindo a extensão dinâmica da voz com a correspondente perda de agudos, perda de agilidade e rouquidão”. Mesmo assim, em geral elas não cancelam as apresentações, mesmo nos dias iniciais do ciclo, em virtude dos prejuízos financeiros e profissionais que os cancelamentos acarretam. No Brasil, por exemplo, os teatros geralmente não contratam cover, de modo que cancelar simplesmente não é uma opção.

Outras fontes de pressão

Evidentemente, em cantoras, todas essas questões hormonais se somam a questões familiares, financeiras, emocionais, afetivas, incerteza profissional, maternidade… Tudo isso contribui para o aumento do estresse ligado à profissão. Drumm relata que as cantoras se queixam do comportamento dos maestros, dos diretores cênicos, de colegas e, por vezes, infelizmente, dos críticos. Em um mundo machista, não é raro que o primeiro comentário feito sobre o desempenho de uma cantora esteja ligado à aparência física. Informalmente, é frequente ouvirmos comentários desse tipo – nada técnicos, muito preconceituosos e machistas. É, pois, natural que essa mentalidade acabe estampada nos textos de alguns críticos.

Daniela Dessì em La Traviata

A história é conhecida: a soprano italiana Daniela Dessì, então com 52 anos, ia cantar Violetta, no Teatro dell’Opera di Roma, em uma produção de La Traviata dirigida por Franco Zeffirelli. Dias antes da estreia, no entanto, na coletiva de imprensa, Zeffirelli sentiu-se à vontade para se queixar de Dessì: “uma mulher de certa idade e corpulenta não é crível no papel”, afirmou. Felizmente, Dessì não engoliu o desaforo e cancelou a sua participação – e, com ela, também Fabio Armiliato, seu marido e o Alfredo da produção.

O dado mais alarmante colhido por Drumm é que metade das cantoras do seu universo de pesquisa pensou em abandonar a profissão. O setor da ópera “dá pouca importância e pouco apoio à geração de cantoras modernas que (…) cuidam de crianças pequenas e de pais idosos”, queixou-se uma das cantoras. “A ópera não é um setor preparado para o trabalho flexível, portanto, em termos reais, trabalhar fora de casa geralmente implica em várias camadas adicionais de trabalho organizacional. É preciso administrar uma casa e organizar os cuidados com os filhos à distância, antes mesmo que a cantora tenha tempo para se concentrar no trabalho (..).  Além disso, as dificuldades hormonais impõem um fardo às cantoras que não é vivenciado por seus colegas homens. Isso não é levado em consideração pelo setor. Ainda, à medida que as mulheres envelhecem, elas são descartadas por cantoras mais jovens, mais aptas, mais baratas e menos sobrecarregadas domesticamente por uma indústria que é predominantemente dirigida por homens, sejam eles heterossexuais ou homoafetivos!”

Antes que os homens se ponham a protestar, é bom lembrar que, como apontou Drumm, embora cantores dos sexos masculino e feminino “compartilhem da mesma incerteza profissional, a influência hormonal contínua e perturbadora sobre a voz é algo que os homens não experimentam ao longo de suas carreiras. O corpo masculino é regulado pela testosterona produzida nos testículos. Os homens sofrem alterações vocais mais extremas na puberdade, mas, uma vez estabelecida a voz e consolidada a técnica, os cantores do sexo masculino sofrem poucas alterações adicionais no aparelho vocal causadas pelos hormônios até a chegada da idade avançada”. Isso não quer dizer, claro, que estejam imunes a outros tipos de alterações ou problemas.

Se o leitor chegou até aqui, estou certa de que, de agora em diante, ele terá em mente que os desafios enfrentados pelas cantoras vão muito além dos oferecidos pela partitura!


Foto de destaque: Karita Mattila em “Tosca” (©Metropolitan Opera, 2009, Ken Howard).

3 comentários

  1. Nunca havia me ocorrido o quanto cantoras sofrem com problemas hormonais. Como homem, costumamos ser mais impiedosos com as cantoras que não estão em seus melhores dias. Talvez uma solução, ainda que delicada e sobre a qual cantoras ainda evitam falar, é expor a situação, mesmo que a posterori.
    E você esqueceu de um ponto importante, as dores de cabeça. Mulheres são acometidas por enxaquecas de forma descomunal em relação aos homens. Eu, por exemplo, posso contar nos dedos de 1 mão o número de dores de cabeça que tive ( ressaca não vale).

  2. Excelente e esclarecedor texto! Obrigada por apontar as dificuldades pelas quais passam a cantoras, que mesmo assim nos brindam e nos encantam com sua arte!

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